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A compreensão da graça divina para bebês que morrem precocemente e indivíduos que nascem com deficiência intelectual severa.

“E, ainda que a consciência nos condene, Deus é maior que nossa consciência e sabe todas as coisas” (1 João 3:20).

O Apóstolo João afirma: — “Deus é maior do que a nossa consciência”. A palavra de Deus, que nos absolve, deve prevalecer sobre a palavra de nossa consciência, que nos condena. No entanto, bebês e pessoas com deficiência intelectual severa não têm uma consciência que os condena. Como, então, pode Deus ser maior sobre suas consciências, se eles não possuem uma consciência que os condena? A resposta é que Deus salva soberanamente. Somente aqueles que são assediados e condenados por sua própria consciência não podem escapar do julgamento de Deus. Por isso, bebês e pessoas com deficiência intelectual estão isentos desse julgamento.

Se a consciência nos acusa por um pecado de nosso conhecimento ou por negligenciarmos um dever conhecido, a condenação divina também recairá sobre nós. Portanto, é imperativo que nossa consciência esteja bem informada e que seja ouvida e atendida com a devida diligência. Em contrapartida, se considerarmos a proposição oposta, é igualmente verdade que, para um indivíduo que não possui consciência e, por implicação, não tem consciência de um pecado ou de um dever negligenciado, Deus não o condena, uma vez que não há uma parte ativa dentro desse indivíduo que possa ser responsabilizada.

O que o Apóstolo João pretende transmitir é que aquele que se encontra atormentado e condenado por sua própria consciência não pode escapar do juízo divino. Assim, aqueles que, como os bebês e as pessoas com deficiência intelectual severa, carecem de uma consciência ativa que lhes permita ser atormentados ou condenados conscientemente, podem, por causa dessa ausência, ser poupados do juízo divino.

A Escritura às vezes associa a consciência do homem à condenação e, outras vezes, à salvação. Ela afirma que é possível que o homem seja salvo sem plena consciência (1 Coríntios 4:4[1]), mas jamais condena o homem sem que ele tenha consciência.

Há anos estudo o papel da consciência na salvação e condenação do homem e, com base no que encontrei nas Escrituras Sagradas, posso afirmar com convicção, respaldado por numerosas evidências, que Deus, sendo perfeitamente justo, jamais, condenará alguém sem que essa pessoa tenha consciência do seu pecado individual. As Escrituras oferecem diversas passagens que sustentam essa verdade. A consciência pode estar ligada tanto à condenação quanto à salvação, com a orientação luzente de que os homens devem buscar uma consciência purificada da culpa do pecado. No entanto, para bebês e pessoas com deficiência intelectual severa, essa realidade não se aplica da mesma forma. 

O caráter misericordioso e compassivo de Deus sugere que a graça também é aplicada a bebês e deficientes intelectuais (Mateus 18:14; Romanos 5:18, 19). Na verdade, Jesus Cristo chamou as crianças para si, assumindo ativamente um papel no bem–estar delas no reino dos céus, disse Jesus: — “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas” (Mateus 19:14). Não podemos afirmar que as crianças são colocadas aqui como um “padrão falso” para o comportamento daqueles que pertencem ao reino dos céus, nem considerar que são meramente um “padrão temporário” para este mundo. Afinal, como afirmam as Escrituras, “quem pertence ao reino dos céus não pertence a este mundo” (Efésios 2:19; Filipenses 3:20; Hebreus 11:13; 1 Pedro 2:11).

Podemos afirmar que a incapacidade de um bebê ou de uma pessoa com deficiência intelectual severa de articular fé em Jesus Cristo não impede que Deus, em sua justiça, lhes conceda a salvação. Em sua infinita misericórdia, Deus pode atrair esses indivíduos para si no céu, fundamentado no sacrifício perfeito de Cristo pelo pecado.

A certeza da salvação dos eleitos fundamenta-se na graça onipotente, que, sustentada pela obediência ativa e satisfação realizadas por Cristo, opera a regeneração, a qual precede o ato de crer em Cristo. A fé, por si só, não é a causa da salvação, mas sim a causa instrumental pela qual recebemos a perfeita justiça de Jesus Cristo. O ato de crer, enquanto fundamento da salvação e baseado meramente em confissão, é imperfeito devido à nossa dívida e condição caída, não podendo ser a causa eficiente da salvação. A santificação, sendo um fruto da justificação e, portanto, subsequente a ela, também não pode ser a causa eficiente da salvação, além de ser contaminada pela nossa pecaminosidade contumaz. Nem a regeneração, nem a justificação alteram nossa condição pecaminosa.

Diante de Deus e de sua Lei, somos simultaneamente pecadores e justos: — pecadores devido à transgressão do primeiro Adão, que nos trouxe morte e dívida, e justos pela perfeita obediência ativa e passiva do segundo Adão, Cristo, pela qual ressuscitamos e recebemos a imputação de sua justiça pela fé, que paga nossa dívida. Importante destacar que é somente após crer em Cristo que a justiça é imputada a nós, libertando-nos da dívida condenatória.

Para aqueles que não conseguem compreender a gravidade do pecado, da dívida, e da beleza da justiça e do pagamento contrastante pela obra redentora de Deus “em Jesus Cristo”, devido a limitações mentais ou morte precoce, o caráter de Deus sugere que Ele providenciará provisões para a salvação desses indivíduos. Embora a maioria das pessoas salvas tenha pelo menos alguma compreensão, embora não plena, do pecado, do arrependimento, da redenção em Cristo e da vida eterna, reconhecemos que aqueles com capacidade mental limitada – como bebês e indivíduos com deficiência intelectual severa – podem ser salvos pela graça onipotente, mesmo sem tal entendimento ou percepção.

O raciocínio é simples: ninguém possui pleno conhecimento, nem pode tê-lo, sobre as obras de Deus, Seu poder, providência e graça. Portanto, a ausência de conhecimento pleno, que configura um conhecimento mínimo, não pode ser a causa eficiente da condenação nem da salvação, conforme afirmado em Efésios 2:8: — “pela graça sois salvos”. Assim, bebês que falecem precocemente e pessoas com deficiência intelectual severa, que não têm acesso a um conhecimento salvífico – pleno o que é impossível ou mínimo que exige uma consciência ativa – não podem ser condenados por falta desse entendimento. Portanto, eles podem ser salvos pela graça de Deus, da mesma forma que são aqueles que possuem algum nível de conhecimento.

Cada uma dessas pessoas – bebê ou deficiente intelectual – é incapaz de compreender as verdades espirituais, não comete atos conscientes de pecado e não entende o conceito e a escolha entre o certo e o errado. Deus chama essas almas preciosas para o céu, para desfrutarem dos prazeres de sua presença gloriosa, jamais as destina a uma eternidade de dor e sofrimento no inferno, longe de sua presença e comunhão.

Nossa consciência não pode ser verdadeiramente pacificada até ser profundamente purificada, conforme afirma Hebreus 10:22: — “Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, tendo os corações purificados da má consciência”. Essa purificação, que envolve um processo consciente de meditação sobre vícios e virtudes, ocorre através da santificação pelo estudo consciente da palavra de Deus (João 17:17), pressupondo a existência de uma consciência ativa e de uma má consciência identificada a ser purificada. No entanto, bebês e pessoas com deficiência intelectual severa não têm a capacidade de compreender o que é um verdadeiro coração e inteireza de fé. Como, então, pode haver uma consciência pacificada se não há a possibilidade de uma má consciência a ser identificada e, portanto, purificada? A resposta é que Deus, em sua graça soberana e onipotente, mergulha esses seres – bebês que morrem precocemente e pessoas com deficiência intelectual severa – no sangue de Jesus Cristo, purificando-os, mesmo que não tenham consciência de sua condição diante dEle e de sua Lei. Ele faz isso com base na justiça de Cristo, garantindo-lhes uma salvação que não depende da compreensão, seja parcial ou completa, mas unicamente da aplicação da perfeita obra redentiva do Salvador a eles.

Ouvir a consciência e comprovar a conversão pela santificação e sinceridade, que são distintivos da predestinação (Efésios 1:4), é a essência da “inocência cristã” [purificação] e a maneira de garantir a certeza da eleição e salvação. Essa sinceridade consciente nos livra de grande transgressão e nos torna “inocentes” [purificados], como Davi escreveu: — “Então serei sincero, e ficarei limpo de grande transgressão” (Salmos 19:13b). No entanto, bebês e pessoas com deficiência intelectual não têm a consciência da “grande transgressão” para agir com sinceridade diante de Deus, confessar seus pecados e, assim, se livrar da condenação e receber a purificação. Portanto, a ausência de consciência impede que eles sejam condenados pela impossibilidade de exercer tal sinceridade consciente. Deus é justo e não condenará aqueles que são impossibilitados, pela ausência de consciência, de demonstrar sinceridade diante dEle.

Antes de apresentar os argumentos sobre o papel da consciência na salvação e condenação do homem, é essencial entender que a consciência é “o aguilhão de Deus em nós”; ela mantém um pacto eterno com Deus e, nesse pacto, jamais será infiel a Ele. É como se a consciência dissesse a Deus: 

[1] – Eu sempre estarei do teu lado.

[2] – Eu serei a tua fiel registradora.

[3] – Eu sempre alertarei quando o pecador for tentado e rebaterei quando o SENHOR for ofendido.

[4] – Eu serei tua testemunha e censurarei todo pecado.

[5] – Eu conduzirei esse pecador nos teus caminhos e jamais permitirei que o pecado encontre abrigo nesta pobre alma.

Este “aguilhão” não pode exercer sua função em bebês e pessoas com deficiência intelectual, pois eles não têm uma consciência ativa.

O Apóstolo Paulo afirma: — “Porque, quando os gentios, que não têm Lei, fazem naturalmente as coisas que são da Lei, não tendo eles Lei, para si mesmos são Lei; os quais mostram a obra da Lei escrita em seus corações, testificando juntamente a ‘sua consciência’, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Romanos 2:14, 15).

Podemos observar a função da consciência nos gentios, que “ora acusa-os, ora defende-os”. Assim, entendemos que o homem é condenado por desprezar a voz da consciência, que distingue pensamentos corretos e errados, que produz pensamentos certos e condena pensamentos errados. A consciência opera tanto pela Revelação Geral (Romanos 1:19 – 32; Salmos 19:1 – 14) quanto pela Revelação Especial (João 3:18, 19), tornando os homens indesculpáveis diante de Deus e de sua Lei. No entanto, o homem sempre tem uma percepção consciente da distinção entre pensamentos corretos e errados (Salmos 14:1; Romanos 3:10 – 20).

Bebês e pessoas com deficiência intelectual, por não terem a capacidade de discernir conscientemente essa Lei, não podem ser condenados.

As Escrituras indicam que somente aqueles que têm conhecimento do bem e do mal — independentemente da idade — têm a responsabilidade de se arrepender (Gênesis 2:17[2]; Deuteronômio 1:39[3]; Isaías 7:15[4]).

Bebês e pessoas com deficiência intelectual não possuem esse conhecimento.

Em Deuteronômio 1:39, Deus disse ao seu povo: — “Os seus filhos são crianças e não sabem a diferença entre o que é certo e o que é errado. E vocês estavam pensando que eles iam cair nas mãos dos inimigos. Mas eles, os seus filhos, entrarão na Terra Prometida. Eu lhes darei essa terra, e eles serão donos dela”. Como as crianças não haviam participado do surto pecaminoso de seus pais, foram poupadas para receber o privilégio que seus pais incrédulos perderam. Por não possuírem consciência, essas crianças, assim como bebês e pessoas com deficiência intelectual, foram poupadas de uma condenação terrena. Da mesma forma, podemos confiar que também são isentos de uma condenação eterna. Deus é misericordioso e não condenará aqueles que são impossibilitados, pela ausência de consciência, de demonstrar sinceridade diante dEle.

Os caminhos de Deus não são como os dos homens. Conforme Isaías 55:8, 9: — “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos”. Se os pensamentos de Deus são mais altos do que os dos homens conscientes, o que dizer de bebês e pessoas com deficiência intelectual que não têm pensamentos conscientes?

Não há razão para duvidar da sua vontade de perdoar generosamente (cf. Isaías 55:12). Embora os caminhos do homem perverso e seus pensamentos malignos possam parecer imperdoáveis, os pensamentos e caminhos de Deus em perdoar não são limitados pela medida dos caminhos e pensamentos humanos. Isso é evidente, como demonstrado em Salmos 25:11[5] e Romanos 5:19, 20[6]. Assim, também podemos afirmar que, se há perdão para homens que, mesmo conscientes, pensam perversamente, certamente há perdão para bebês e deficientes intelectuais que não possuem consciência.

Há também o que foi dito pelo Profeta Isaías, que “homem comerá manteiga e mel, quando souber rejeitar o mal e escolher o bem” (Isaías 7:15). Mas se bebês e deficientes intelectuais não têm a capacidade de rejeitar o mal e escolher o bem, sendo faculdades da consciência, Deus os privaria da “manteiga e mel”? Certamente, não, como demonstrado em Deuteronômio 1:39. Por essa razão, podemos afirmar que Deus também não os privaria da salvação, a qual é uma bênção ainda mais importante do que as bênçãos terrenas.

Conforme 2 Samuel 12:23, o rei Davi demonstrou confiança na salvação de seu filho, dizendo: — “Porém, agora que está morta [a criança] […]. Poderei eu fazê-la voltar? Eu irei a ela [falecerei], porém ela não voltará para mim [não voltará a viver]”. As palavras de Davi revelam não apenas a permanência da morte da criança, mas também sua esperança de uma futura comunhão com seu filho. Mesmo reconhecendo que os bebês (e deficientes intelectuais) são pecadores desde o ventre (Salmos 51:5), pela reação de Davi, podemos acreditar que Deus tem um lugar reservado para eles no céu.

Alguns argumentam que a passagem de 2 Samuel 12:23 não trata necessariamente da salvação da criança, mas que o rei Davi apenas quis dizer que “a criança não podia retornar à vida e à atividade, e que ele, eventualmente, se juntaria ao seu filho na morte”. Embora não neguemos essa interpretação, isso não exclui a possibilidade de considerar o destino da criança no céu, já que ela morreu.

Concordo que o texto reflete o reconhecimento de Davi de que ele também iria ao túmulo, uma realidade inevitável para todos. No entanto, a reação pacífica de Davi à morte de seu bebê, que não possuía consciência do pecado, em contraste com a dor imensa e desesperadora que ele expressou em 2 Samuel 18:33[7] pela morte de seu filho adulto, Absalão, que tinha plena consciência do pecado, sugere fortemente duas coisas: — sua esperança em relação aos bebês que morrem na infância e seu desespero porque Absalão morreu em sua impiedade conscientemente.

As consciências de muitas pessoas em um grupo produzem um testemunho mútuo, e os julgamentos de valores coletivos se espalham entre elas. As decisões resultantes podem tanto reprovar quanto defender os membros do grupo. Embora os autores inspirados não descrevam explicitamente todo o conteúdo desse padrão interior, eles asseguram sua existência. Sabemos que tanto a consciência quanto a razão podem distinguir o que é certo do que é errado. Quando os homens reagem corretamente a esse padrão, tornam-se praticantes obedientes da Lei que Deus coloca em seus corações. No entanto, esse fenômeno não ocorre em bebês e deficientes intelectuais, uma vez que eles não têm a capacidade de discernir entre atitudes boas e más. Portanto, podemos deduzir que “onde não há Lei, também não há transgressão” (Romanos 4:15). Isso reforça a ideia de que, sem a capacidade de entender e aplicar a Lei, bebês e deficientes intelectuais não podem ser considerados transgressores, estando assim isentos de condenação. Deus, em sua justiça perfeita, não pode declarar o homem condenado até que ele tenha consciência do pecado. Deus é justo, e sua justiça assegura que ninguém será condenado sem o devido conhecimento do erro e da oportunidade de arrependimento.

Em 1 Timóteo 1:5, a Escritura declara: — “Ora, o intuito da presente admoestação visa ao amor que procede de um coração puro, de ‘consciência boa’ e de fé sem hipocrisia”. A admoestação está diretamente relacionada à fonte do autor, que inclui um coração puro, uma boa consciência e uma sã doutrina, e esse processo ocorre conscientemente.

Se considerarmos o oposto dessa sentença, podemos afirmar, com a mesma verdade, uma sentença negativa (para a condenação): — um coração impuro, uma má consciência e uma doutrina corrompida. Apenas aqueles com consciência ativa podem alcançar esse estado de obstinação. Por isso, as Escrituras afirmam: — “O deus deste mundo cegou a mente (consciência) dos que não creem [conscientemente], para que não consigam ver a luz das boas–novas, não entendendo esta mensagem a respeito da glória de Cristo, que é a imagem de Deus” (2 Coríntios 4:4). Satanás ataca a consciência dos homens ímpios e a segurança dos crentes com falsos argumentos, mas não pode fazer o mesmo com bebês e deficientes intelectuais, pois eles não possuem consciência [entendimento] para serem atacados dessa maneira.

Jesus Cristo afirmou que “a menos que [os homens] se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no reino dos céus” (Mateus 18:3). Da mesma forma, Deus não destruiu Nínive porque, como Ele mesmo declarou, havia na cidade “mais de cento e vinte mil seres humanos que não sabem nem discernir entre a mão direita e a esquerda” (uma metáfora que pode ser aplicada para crianças pequenas ou deficientes intelectuais), tampouco “entre o bem e o mal” [eles não têm consciência do pecado] (Jonas 4:11). Essa falta de discernimento, associada à “inocência”, incluindo a dos animais, levou Deus a mostrar sua misericórdia para com a cidade. Isso destaca a compaixão de Deus até mesmo para com aqueles que não têm plena consciência do pecado e não possuem intelecto, como os animais.

Deus explicou a razão pela qual Nínive não deveria ser destruída, mencionando que a cidade tinha mais de 120 mil “criancinhas” — pessoas que não sabiam discernir entre a mão direita e a mão esquerda. Se Deus poupou a Nínive, preservando a vida mortal daqueles que não tinham plena capacidade de discernimento, seria razoável pensar que Ele também pouparia as almas imortais dos bebês e deficientes intelectuais que morreram. Não se trata apenas de argumentar; é uma questão de compreender a natureza de Deus. Se Deus descartasse bebês ou deficientes intelectuais, então Ele não seria o Deus que eu adoro e creio — o Deus Justo e Justificador, que salva graciosamente pecadores conscientes do pecado e condena pecadores conscientes do pecado. Deus é misericordioso e não condenará aqueles que são impossibilitados, pela ausência de consciência, de demonstrar sinceridade diante dEle.

Jonas revela algo notável para o entendimento da consciência humana no âmbito da salvação: — a preocupação de Deus não se limita apenas aos homens de Nínive, que, apesar de inconscientes do pecado, carregam a sua imagem, mas também se estende até mesmo a animais mortais, que claramente não possuem consciência nem imortalidade. O SENHOR diz: — “[…] além de muitos animais inocentes”. Se Deus poupou misericordiosamente até mesmo animais que não possuem a sua imagem, é razoável acreditar que Ele também faz provisões para as almas imortais dos bebês e deficientes intelectuais no âmbito da salvação? A resposta é um sonoro: — Sim!

Seriam esses animais mais importantes que bebês e deficientes intelectuais? A resposta é um sonoro: — Não!

Concordo com as palavras de Spurgeon: — “Se tivéssemos um Deus cujo nome era Moloque, se Deus fosse um tirano arbitrário, sem benevolência ou graça, poderíamos supor algumas criancinhas sendo lançadas no inferno, mas nosso Deus, que dá sustento aos filhos dos corvos quando clamam, certamente, não achará nenhum regozijo no clamor e gritos das criancinhas lançadas para longe da sua presença”.

É uma visão profundamente consoladora, Spurgeon capta bem a essência da natureza benevolente e graciosa de Deus, contrastando-a com qualquer concepção de divindade que seja injusta ou cruel. A compreensão de Deus como um ser que se importa com todas as suas criaturas, incluindo os mais vulneráveis, reflete a profunda misericórdia e justiça divina.

Spurgeon conclui seu pensamento: — “Lemos dEle que Ele é tão bondoso que cuida dos bois, que não teria atada a boca do boi que trilha o cereal. Sim, Ele cuida do passarinho no seu ninho e não deixaria morrer a mãe deles, enquanto aninhando estar os seus pequenos. Ele deu mandamentos e ordenanças até para as criaturas irracionais. Ele providencia comida para o animal mais bruto, e também não negligencia nenhuma minhoca mais do que um anjo, e podemos nós crermos que, com tal bondade universal quanto essa, que Ele lançaria a alma da criancinha, digo eu, seria contrário a tudo que temos lido e crido dEle, que a nossa fé enfraqueceria diante de uma revelação que afirmaria um fato tão singularmente excepcional ao grau usual de seus outros feitos. Temos aprendido humildemente a submeter-nos à sua vontade e não nos atreveremos a criticar ou acusar o SENHOR de tudo, nós confiamos que Ele é justo em tudo que Ele quer fazer. Portanto, qualquer coisa revelada por Ele, aceitaremos, mas Ele nunca pediu, e Ele nunca pedirá de nós, tão desesperada fé quanto imaginar a bondade de Deus na miséria eterna de uma criancinha lançada no inferno”.

Bebês que morrem e deficientes intelectuais que nascem sem a capacidade de responder à mensagem do Evangelho têm sua salvação assegurada, não porque sejam isentos de pecado, mas porque são abrangidos pela justiça e misericórdia de Deus. Eles são salvos pelos méritos de Jesus Cristo, que os regenera e justifica pelo seu sangue, que os redimiu eternamente. 

Todos que forem eternamente condenados o serão porque conscientemente rejeitaram a Jesus Cristo e a Deus que o enviou (João 17:3).

Caim poderia ter superado seu pecado confessando-o, mas, dominado pela ira e culpado por sua consciência, sucumbiu. Ele abafou a voz de sua consciência e, guiado por intenções malignas, assassinou seu irmão Abel (Gênesis 4:8 – 16).

Enquanto a consciência continua a infligir o castigo divino, muitos, conscientemente, oram, ouvem, leem e toleram seu pecado. No entanto, mesmo após receber a graça e misericórdia de Deus, ao amanhecer do dia seguinte, retornam a pecar conscientemente, desprezando a Deus. Hoje confessamos nossos pecados com sinceridade e consciência, mas amanhã repetimos os mesmos pecados com plena consciência. Prometemos evitar o pecado agora, mas, em pouco tempo, agimos como se nada tivesse sido prometido, também conscientemente.

Aqui estão duas razões para confiar na eleição de bebês que morrem e deficientes intelectuais:

[1] – Deus reserva sua ira para aqueles que, conscientes, não têm desculpa.

Em Romanos 1, o Apóstolo Paulo afirma que Deus revela sua ira contra aqueles para quem “está bem claro” conhecer a respeito de Deus (Romanos 1:19), aos quais Ele “mostrou” o que pode ser conhecido sobre si mesmo (Romanos 1:19). Eles “perceberam claramente” seu poder eterno e natureza divina através da criação: — “Os seres humanos podem ver tudo isso nas coisas que Deus fez” (Romanos 1:20). Apesar de conhecerem a Deus, eles suprimem sua glória e domínio, “sabendo quem Deus é” (Romanos 1:21). Por isso, são considerados “indesculpáveis” (Romanos 1:20). Em outras palavras, Deus derrama sua ira sobre aqueles que possuem a capacidade de compreender sua verdade, mas optam por rejeitá-la.

A aplicação da revelação da ira de Deus mencionada em Romanos 1 não se estende a bebês e deficientes intelectuais. Esses indivíduos não têm a capacidade de perceber ou compreender a verdade de Deus de maneira consciente e intencional. Portanto, não se aplicam a eles os mesmos princípios de responsabilidade e condenação que se aplicam àqueles que têm plena capacidade de compreensão e, ainda assim, rejeitam a revelação divina.

Romanos 1 sugere que Deus concede uma “isenção” ou “garantia” àqueles que não possuem capacidade cognitiva, como bebês e deficientes intelectuais, para compreender e desonrar conscientemente a sua revelação. Assim, tais indivíduos não estão sujeitos ao mesmo julgamento eterno reservado àqueles que têm a capacidade de compreender e rejeitar a Deus conscientemente.

Há essa “isenção” porque indivíduos com capacidades intelectuais severamente limitadas não têm a habilidade de perceber, compreender e honrar a Deus. Assim, eles não podem desonrá-lo conscientemente, pois não têm a capacidade de reconhecê-lo e rejeitá-lo obstinadamente. A ausência de percepção e compreensão resulta em uma falta de responsabilidade consciente diante de Deus.

Considere novamente o texto de João 9:41, onde Jesus diz aos líderes judeus: — “Se vocês fossem cegos, não teriam culpa; mas agora que vocês dizem: — ‘Nós vemos’, sua culpa permanece”. Isso nos ajuda a compreender que a falta de percepção e compreensão está diretamente ligada à responsabilidade diante de Deus. A ausência de capacidade para perceber e compreender implica uma ausência de culpa, conforme evidenciado nas Escrituras.

[2] – Deus julga as pessoas pelo pecado consciente e individual.

Embora o pecado de Adão seja imputado a toda a humanidade (Romanos 5:12 – 14), essa imputação não serve como base para o castigo eterno individual de Deus. As Escrituras ensinam que Deus pune os pecadores com base nos pecados que cometem individualmente.

A morte universal dos seres humanos é uma evidência do julgamento de Deus sobre todos devido ao pecado de Adão. No entanto, o castigo eterno é reservado apenas para aqueles que cometem pecado voluntariamente (2 Coríntios 5:10; Apocalipse 20:12 – 15).

Deuteronômio 1:35 – 39 revela que Deus pune as pessoas por pecados pessoais e individuais.

Além disso, Deuteronômio demonstra claramente que há momentos em que uma pessoa pode estar temporariamente incapaz de distinguir entre o certo e o errado. O Profeta Isaías confirma essa realidade ao escrever: — “Antes que o menino saiba recusar o mal e escolher o bem […]” (Isaías 7:14 – 16). Essas passagens sugerem que existe um estado no qual a pessoa não é capaz de distinguir entre o certo e o errado. Como resultado, Deus não impõe a essas pessoas o mesmo padrão que usa para aqueles que desobedecem voluntariamente (Romanos 1). Quando esse estado de incapacidade se estende por toda a vida, como ocorre com deficientes intelectuais, não há pecado individual que Deus possa punir eternamente.

A consciência, internamente, é como mil testemunhas e testemunhará contra o pecador. Contudo, como bebês e deficientes intelectuais não a possuem, não haverá nem mesmo uma testemunha para os condenar.

Ninguém obtém absolvição diante do Senhor sem primeiro comparecer e responder conscientemente às acusações contra si. Esse processo é essencial para o pecador buscar a Cristo; a Lei foi dada para esse fim, sendo trazida à consciência com esse propósito, conforme Gálatas 3:24[8].

Bebês e deficientes intelectuais não podem comparecer e responder conscientemente às acusações da Lei contra si mesmos, e, por isso, não podem ser condenados. A constante sensibilidade da consciência em relação ao pecado, às tentações e à aparência do mal é um sinal positivo da salvação, como se vê em Atos 24:16: — “E por isso procuro sempre ter uma ‘consciência sem ofensa’, tanto para com Deus como para com os homens”. Mas, por não possuírem essa consciência, bebês e deficientes intelectuais são salvos, sendo absolvidos graciosamente. O responsável por essa salvação é Deus, o juiz de todos, que age por sua graça. A regeneração de um pecador é um ato divino, independente da vontade do homem. A forma e a causa motivadora para a salvação de bebês e deficientes intelectuais são: — a graça e a justiça de Deus. Essa salvação é concedida gratuitamente, sem que eles tenham feito algo para merecê-la ou obtê-la, e provém do favor imerecido de Deus para com criaturas que não são dignas e merecem condenação. Mesmo reconhecendo que bebês e deficientes intelectuais são pecadores, afirmamos que não são pecadores imperdoáveis.

Embora uma pessoa possa demonstrar um nível maior de santificação do que outra, aos olhos de Deus, todos os crentes são igualmente salvos, pois a salvação não admite graus. Da mesma forma, bebês que morrem precocemente e deficientes intelectuais, que não têm a oportunidade de experimentar a santificação através da verdade da Palavra, não são privados da salvação. Isso ocorre porque a salvação é um ato exclusivamente divino. Portanto, bebês e deficientes intelectuais, embora não possam participar da causa instrumental da fé devido à falta de consciência, podem receber a salvação pela graça de Deus. A Escritura afirma que somos justificados pela fé (Romanos 5:1), mas também nos consola com a verdade de que somos salvos pela graça.

Os arminianos afirmam que a própria fé, ou o ato de crer, é aceito como nossa justiça justificadora. Em contraste, nossa Confissão ensina que Deus não nos justifica “imputando a própria fé, o ato de crer, como nossa justiça”. A fé, enquanto um ato realizado por nós, é uma obra de obediência à Lei, assim como qualquer outra ação; portanto, ser justificado pelo ato de fé seria ser justificado por uma obra. Isso é contrário às declarações explícitas das Escrituras, que excluem todo tipo de obra do âmbito da justificação (Gálatas 2:16).

Em oposição às más interpretações papistas e arminianas da relação entre fé e justificação, nossa Confissão ensina que “a fé, recebendo e descansando em Cristo e sua justiça, é o único instrumento de justificação”. Alguns distorcem esse ensino, como se a fé fosse o instrumento que Deus utiliza para justificar. Contudo, a intenção nunca foi afirmar que “a fé é instrumento por parte de Deus, mas sim por parte de nós”. Sendo assim, como bebês e deficientes intelectuais não podem crer, eles são salvos pela regeneração e pela justiça de Deus em Cristo Jesus.

O ponto de vista reformado foi bem expresso por Thomas Watson (1620 – 1686), que afirmou: — “Não é o batismo que faz de alguém um cristão; muitos não passam de pagãos batizados. A parte essencial da religião está na nova criatura[9]. Ser regenerado é mais importante do que ser religioso. Watson reconhecia que, a menos que nos tornemos novas criaturas, a obediência religiosa que prestamos não será aceita[10].

A Confissão de Fé de Westminster (CFW) apresenta a doutrina da regeneração como o chamado eficaz dos eleitos (8.8; 10.1) e também a regeneração de crianças eleitas que morrem na infância (10.3).

A fé não é justiça. A justiça é o cumprimento da Lei, e Cristo cumpriu perfeitamente a Lei, “para que nEle fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21).

É a graça de Deus, e deve ser uma grande graça, pois é a graça de um Deus santo, justo e poderoso; a graça daquele Deus que pode fazer todas as coisas.

Essa salvação é perfeitamente compatível, pois a justiça de Deus e sua Lei são honradas de maneira mais sublime pela obediência e morte de Cristo do que poderiam ser pela obediência ou morte do próprio homem justificado. Mesmo que bebês que morrem fossem precocemente ressuscitados e chegassem à fase adulta para obedecer à Lei, ou que deficientes intelectuais fossem curados milagrosamente e respondessem ao Evangelho, a obediência e a morte de Cristo conferem maior honra a Deus e à sua Lei do que as falhas e a limitada obediência desses indivíduos.

Por fim, pela obediência e morte de Cristo, a Lei e a justiça de Deus são honradas tanto ativamente quanto passivamente. Se Adão tivesse permanecido fiel e sido justificado por suas obras, a Lei teria sido glorificada apenas ativamente. Se os justificados tivessem sido condenados e sofrido eternamente por seus pecados, a Lei e a justiça de Deus teriam sido glorificadas apenas passivamente. No entanto, por meio da fiança do Mediador, Jesus Cristo, a Lei e a justiça são glorificadas de ambas as formas. Cristo obedeceu [ativamente e passivamente[11]] a todos os mandamentos da Lei em todos os seus detalhes e sofreu a ira e a maldição de Deus até o máximo, algo que nenhuma criatura poderia ter suportado; e fez isso com uma paciência, submissão e resignação que estão além das capacidades de qualquer ser criado, conforme Isaías 53:7[12].

O significado do episódio do cego de nascença para aqueles com deficiências congênitas (João 9:1 – 3).

O episódio do cego de nascença, conforme descrito em João 9:1 – 3, oferece uma perspectiva profunda sobre a intervenção divina na vida daqueles que nascem com malformações ou condições congênitas, o que pode ser implicitamente aplicado também aos indivíduos com deficiência intelectual. Além disso, esse relato oferece importantes nuances para a compreensão da doutrina da salvação gratuita. Quando os discípulos questionam Jesus, dizendo: — “Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego?”, Jesus responde: — “Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus”.

Essa resposta de Jesus desvia o foco da culpa ou pecado e destaca a soberania divina, mostrando que certas condições não são necessariamente resultado direto do pecado, mas podem servir a um propósito maior dentro do plano redentivo de Deus (Êxodo 4:11), como é o caso da morte precoce de bebês ou do nascimento de pessoas com deficiência intelectual.

Esse texto se relaciona diretamente com a questão da salvação de bebês que falecem precocemente e, de forma mais específica, com a consideração de pessoas com deficiência intelectual como eleitas por Deus. Assim como no caso do cego de nascença, Deus pode ter um propósito redentor e glorioso na vida daqueles que, aos olhos do mundo, parecem frágeis ou espiritualmente desfavorecidos, como bebês que morrem ou deficientes intelectuais. A salvação não depende de habilidades intelectuais ou da capacidade de compreender plenamente as verdades espirituais do Evangelho, mas da graça onipotente de Deus, que opera de maneiras misteriosas e insondáveis, contudo, sempre de modo eficaz, justo e suficiente.

No relato de João 9, o cego de nascença é descrito como um mendigo (v. 8), o que era uma condição comum para aqueles que enfrentavam dificuldades físicas na época. Mendigos costumavam se reunir nas portas do Templo, buscando esmolas dos adoradores, como vemos em Atos 3:1 – 3. Assim, é provável que esse episódio tenha ocorrido nas proximidades do Templo, logo após o debate entre Jesus e os fariseus, registrado no capítulo 8 de João.

É importante notar que o capítulo 8 de João apresenta um episódio singular nas Escrituras, em que Deus em Cristo concede perdão gratuitamente, sem que a mulher adúltera faça um pedido explícito e consciente de perdão a Cristo. Quando Jesus pergunta à mulher: — “Ninguém te condenou?” e ela responde “Ninguém, Senhor”, Ele declara: — “Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais [santifique-se]” (v. 11). Nesse contexto, Jesus perdoa a mulher — “eu não te condeno” — sem que ela clame diretamente por misericórdia, evidenciando a graça soberana e onipotente de Deus em perdoar. Isso demonstra que o perdão divino pode alcançar até mesmo aqueles que não têm plena consciência de sua necessidade de perdão e de sua condição diante de Deus e de sua Lei (v. 10, 11).

Por que não podemos aplicar necessariamente esse preceito a bebês que morrem precocemente e a pessoas com deficiência intelectual, considerando que eles possam ser perdoados gratuitamente, mesmo que, assim como a mulher adúltera, não tenham plena consciência de sua condição de devedores diante de Deus e de sua Lei?

Há uma conexão simbólica interessante entre esses dois episódios, ambos envolvendo a interação de Jesus com a terra. No capítulo 8, durante o confronto com os fariseus que buscavam condenar a mulher adúltera, Jesus se inclina e escreve com o dedo na terra. No capítulo 9, Ele cospe na terra, faz lodo com a saliva e aplica-o nos olhos do cego de nascença. Esses gestos aparentemente simples — “escrever” e “cuspir” na terra — podem carregar significados espirituais profundos. Eles não apenas refletem a soberania de Cristo sobre a criação, mas também simbolizam a ação divina de moldar e restaurar o ser humano, tanto física quanto espiritualmente.

No primeiro caso, vemos a condenação dos fariseus hipócritas que, mesmo “redarguidos da consciência” (v. 9), rejeitam a Cristo posteriormente (v. 13). No entanto, também há o perdão gratuito de Jesus à mulher adúltera (v. 11), demonstrando a graça soberana de Deus.

No segundo caso, a salvação é manifesta através da cura do cego de nascença. Essa cura não é apenas um “sinal de redenção[13], mas também expõe a cegueira espiritual dos fariseus, que, apesar de testemunharem a obra de Cristo, conscientemente a rejeitam e blasfemam contra ela (v. 16, 24, 29 – 34).

Em ambos os episódios, Jesus demonstra sua autoridade ao reivindicar sua divindade, tanto para perdoar quanto para curar, revelando que Ele é a fonte de salvação. Mesmo diante da fraqueza e limitação humana, a graça de Deus pode se manifestar poderosamente. Ao expor a cegueira espiritual daqueles que se recusam conscientemente a crer, Jesus nos ensina que a verdadeira visão não é apenas física, mas espiritual, e que é Ele quem ilumina os corações para enxergarem a verdade.

No versículo 39, Jesus afirma: — “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não veem, vejam; e os que veem, sejam cegos”. A seguir, no versículo 40, os fariseus que o acompanhavam perguntam sarcasticamente: — “Também nós somos cegos?”. Eles não fazem uma pergunta sincera, mas desafiam Jesus, acreditando que, como líderes espirituais, “veem” a verdade divina com clareza.

Jesus responde no versículo 41: — “Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: — ‘Vemos’, por isso o vosso pecado permanece”. A resposta é incisiva: — se os fariseus fossem espiritualmente cegos, ou seja, ignorantes da verdade, não seriam culpados de pecado, pois a rejeição da verdade requer conhecimento consciente dela. No entanto, como afirmam que “veem”, ou seja, que compreendem a verdade, mas ainda assim rejeitam a Jesus, seu pecado “permanece”. Eles se tornam culpados de um pecado grave porque, apesar de terem acesso à luz da verdade, a recusam conscientemente.

Esse princípio não se aplica a bebês ou pessoas com deficiências intelectuais, pois estes não têm a capacidade de rejeitar conscientemente a luz da Revelação Geral ou Especial. Como não possuem a mesma responsabilidade moral, não podem ser condenados pelo mesmo tipo de pecado consciente que Jesus aponta nos fariseus.

A expressão “ver” [“Vemos”] sugere uma “não crença” consciente, que, por sua vez, condena o homem, conforme expresso na afirmação de Jesus: — “Como agora dizeis: — ‘Vemos’ [negligenciando conscientemente aquele que pode perdoar pecados concedendo visão salvadora], por isso o vosso pecado permanece [o que os torna condenados diante de Deus e de sua Lei]”. Essa declaração destaca que a rejeição consciente da verdade de Deus leva à condenação.

Em contraste, “não ver” refere-se à ausência de consciência do pecado, o que implica salvação gratuita por Deus em Cristo. Como Jesus diz: — “Se fôsseis cegos [não podendo perceber conscientemente seus pecados], não teríeis pecado [não estariam condenados diante de Deus e de sua Lei]”. Esse contraste evidencia que Deus não pode condenar o homem sem que ele tenha plena consciência de sua condição pecaminosa. A consciência do pecado é essencial para a responsabilidade diante de Deus, e aqueles que não têm essa consciência, como bebês ou pessoas com deficiências intelectuais, não estão sob a mesma condenação.

Podemos aplicar essa sentença aos bebês que morrem precocemente e aos deficientes intelectuais severos? A resposta é afirmativa. Eles não têm a capacidade de “ver” conscientemente seus pecados e, por essa razão, são graciosamente salvos por Deus em Cristo Jesus, nossa justiça. Isso reflete a profunda misericórdia e justiça divina, demonstrando que a salvação não depende da capacidade de perceber ou compreender, seja parcial ou completamente, o pecado, mas é um ato soberano da graça de Deus.

Quando os discípulos perguntam: — “Quem pecou?” (v. 2), essa pergunta reverbera uma crença comum entre os judeus daquela época, semelhante ao pensamento dos amigos de Jó, de que todo infortúnio temporal seria uma punição direta de Deus por algum pecado específico. No caso de uma doença congênita, alguns poderiam pensar que o pecado havia sido cometido no ventre materno ou pelos pais, cujas ações pecaminosas teriam resultado no sofrimento de seu filho. No entanto, Jesus refuta essas explicações, considerando-as inadequadas (v. 3), ao afirmar que nem o homem, nem seus pais pecaram de maneira a causar a cegueira, mas que essa situação existia para que as obras de Deus se manifestassem nele.

Quem pecou, este bebê ou seus pais, para que ele morresse tão precocemente? Quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse com essa deficiência intelectual severa? Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para se manifestarem neles as obras de Deus, especialmente as obras da providência e da graça.

Isso não implica que Jesus negue a possibilidade de que certas provações possam ser usadas por Deus para punir ou corrigir pecados específicos, como ocorreu com Davi após seu adultério e assassinato (2 Samuel 12:11 – 14). Tampouco Cristo refuta a doutrina do Pecado Original (Romanos 5:12 – 21), que ensina que o sofrimento é uma consequência coletiva do pecado e da rebelião de Adão. No entanto, Jesus adverte contra a presunção de julgar o sofrimento de outros como punição direta por pecados individuais (Mateus 7:1). A pergunta feita a Jesus apresenta um falso dilema, oferecendo apenas duas possibilidades para as aflições do homem: — seus próprios pecados ou os pecados de seus pais. No entanto, Jesus apresenta uma terceira alternativa, demonstrando que o sofrimento nem sempre está ligado a um pecado específico, mas pode servir a um propósito maior no plano de Deus (v. 3).

Um adendo importantíssimo.

Para pessoas com deficiência intelectual que adquiriram essa condição devido a acidentes, doenças ou outras causas, acredito que sua condição pré-existente será um fator determinante na sua sentença, seja para salvação ou condenação. Isso reflete a compreensão de que a responsabilidade moral e a capacidade de discernir são consideradas ao avaliar a situação espiritual e o destino eterno dessas pessoas.

Ou seja, se a pessoa era ímpia antes do acidente ou doença que resultou na deficiência intelectual, “sua condenação foi confirmada”, assumindo que Deus não quis salvá-la antes do evento que a deixou nessa condição. Por outro lado, se a pessoa era cristã antes do acidente ou doença que resultou na deficiência, “sua salvação foi confirmada”, já que Deus decidiu poupá-la do sofrimento consciente associado à sua condição de pecador diante dEle e dos outros — uma grande angústia para os verdadeiros filhos de Deus, mesmo quando já estão salvos.

Isso pode ser visto como uma forma de conforto glorioso, já iniciado e experimentado aqui na Terra, além de ser uma manifestação da ação soberana de Deus em confirmar a salvação dos eleitos. Assim como Deus confirmou a condição dos anjos, distinguindo os eleitos dos anjos caídos, Ele também confirma a salvação de seus escolhidos.

Considerações finais.

Jesus Cristo verá o fruto do trabalho de sua alma e ficará plenamente satisfeito; nada menos do que isso o satisfará. O poder e a beleza da preciosa redenção abrangem a salvação de uma vasta multidão, incluindo bebês que morrem precocemente, seja por aborto espontâneo, aborto provocado, doença ou qualquer outra circunstância, assim como indivíduos com deficiência intelectual severa, que nasceram assim devido ao pecado de Adão. Em sua justiça e misericórdia, Deus, em Cristo, os salvará.

Suponhamos que uma mulher tenha sofrido um aborto espontâneo ou que seu filho tenha nascido com deficiência intelectual severa. Com base na compreensão da graça e justiça divina, podemos afirmar com confiança que essas crianças estão salvas. A natureza da redenção de Cristo e o caráter misericordioso de Deus asseguram que, mesmo na ausência de compreensão plena do Evangelho, essas crianças são abrangidas pela graça salvadora. Portanto, é razoável acreditar que tanto a criança, que foi abortada, quanto a que nasceu com deficiência intelectual severa, estão sob a graça de Deus e são incluídas entre os eleitos.

Essa é minha crença, fundamentada nas palavras de Jesus: — “Deixai os meninos, e não os estorveis de vir a mim; porque dos tais é o reino dos céus” (Mateus 19:14). Acredito que está dentro do desígnio de Deus redimir aqueles que não têm capacidade para discernir entre a mão direita e a esquerda, como mencionando em Jonas 4:11. A infância e a deficiência intelectual é um dos sinais dessa incapacidade. Jesus os toma para si.

Isso é extremamente confortador para aqueles que enfrentam a experiência traumática de perder um filho precocemente ou para os pais de uma criança com deficiência intelectual severa, onde surgem dúvidas como: — Como meu filho entenderá o Evangelho? Como posso instruí-lo sobre o que Deus preceitua, ameaça e promete? Ele já está condenado por não poder crer, conforme escrito por Marcos e João? Se ele morrer, estará condenado? São muitas as aflições de uma família nessas condições.

Enquanto escrevia este texto, eu me recordava de meus filhos, ainda com poucos meses de vida, dormindo serenamente. Ao observá-los, via em seus rostos o verdadeiro semblante de filhos de Deus. Embora eu não afirme que eles sejam isentos de pecado, definitivamente não posso conceber, nem apoiar a ideia de que Deus os lançaria ao mais profundo abismo, onde, em meio às trevas e tormentos, eles gemeriam em sofrimento eterno sem sequer poder falar. Acredito firmemente que Deus os ama como um pai ama seus filhos.

Se Deus não ama uma criancinha de meses, seja viva ou falecida, ou indivíduos com deficiência intelectual (pois Deus é Senhor), então eu também duvidaria de seu amor por mim, mesmo com todos os meus erros. O amor de Deus por mim é uma realidade indiscutível, e nada pode anulá-lo, assim como sua graça não pode ser substituída por recursos humanos. Se Deus me amou uma vez, Ele me amará para sempre — e, com certeza, também cuidará de minhas crianças, estejam vivas ou falecidas, bem como dos filhos de outras pessoas, incluindo bebês falecidos precocemente ou deficientes intelectuais. Deus é infinitamente bom, amoroso e misericordioso para com todos os seus.

O Antigo Testamento nos assegura que Deus “juntará os carneirinhos, os carregará no colo e guiará com carinho as ovelhinhas que estão amamentando” (Isaías 40:11). Com base nesta promessa, creio que Deus cuida de todas as criancinhas, sejam elas vivas ou falecidas, ou nascidas com deficiência intelectual, com a mesma ternura e amor que Ele demonstra em sua Palavra.

Paz e graça.
Pr. Dr. Plínio Sousa.

[1] – “Porque em nada me sinto culpado; mas nem por isso me considero justificado, pois quem me julga é o Senhor” (ACF).

[2] – “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (ACF).

[3] – “E vossos meninos, de quem dissestes: — Por presa serão; e vossos filhos, que hoje não conhecem nem o bem nem o mal, eles ali entrarão, e a eles a darei, e eles a possuirão” (ACF).

[4] – “Manteiga e mel comerá, quando ele souber rejeitar o mal e escolher o bem” (ACF).

[5] – “Por amor do teu nome, Senhor, perdoa a minha iniquidade, pois é grande” (ACF).

[6] – “Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão feitos justos. Veio, porém, a Lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça” (ACF).

[7] – “Então o rei se perturbou, e subiu à sala que estava por cima da porta, e chorou; e andando, dizia assim: — Meu filho Absalão, meu filho, meu filho, Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho!” (ACF).

[8] – “De maneira que a Lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados” (ACF).

[9] – Thomas Watson, A plea for the godly, Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1993, p. 287.

[10] – Watson, A plea for the godly, p. 288.

[11] – A obediência ativa de Cristo refere-se ao cumprimento perfeito da Lei de Deus por parte de Cristo durante Sua vida na Terra. Isso inclui a observância de todos os mandamentos e preceitos da Lei Mosaica. A obediência passiva de Cristo refere-se à sua submissão à vontade de Deus, incluindo o sofrimento e a morte na cruz. Esta obediência é chamada de “passiva” porque envolve a aceitação de condições impostas, em vez de ações proativas.

[12] – “Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim Ele não abriu a sua boca” (ACF).

[13] – O verdadeiro milagre é a salvação — No Novo Testamento, especialmente no Evangelho de Lucas, encontramos trechos significativos sobre a natureza da salvação. Em vez de dizer: — “A tua fé te curou”, como seria comum em relatos onde há cura, Lucas registra Jesus afirmando: — “A tua fé te salvou” (Lucas 7:50; 8:48; 17:19; 18:42). Apesar de ocorrerem curas nesses casos, como entender essa afirmação de Jesus? O foco está claramente na salvação, mesmo quando há cura. A fé que Jesus elogia vai além da crença na possibilidade de um milagre; ela implica uma confiança em Jesus, independentemente de receber ou não o milagre. Por isso, Tiago afirma que “a oração da fé salvará o doente e, se houver cometido pecado, ser-lhe-ão perdoados”, o que sugere que “a cura é um sinal da fé salvadora que Cristo aprova”. Assim, a cura indica o perdão divino. Jesus previu uma fé que transcende a expectativa de um milagre; a fé que Cristo aprova é centrada exclusivamente nEle, e não na possibilidade de receber algo. No caso do homem paralítico, a concessão do perdão dos pecados por Cristo antes da cura física demonstrou que o perdão dos pecados era a justificação, e a cura física serviu como um símbolo da santificação (Marcos 2:7).

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