Identifique-se com que espécie de leitura é a sua, para que assim, tenha um maior aproveitamento enquanto leitor; não se pode embaralhar a essência com o método, mutuamente.
Primeiro, lê-se para se ter uma formação e ser alguém.
As leituras de profundidade requerem docilidade e acatamento; docilidade, no sentido em que aqui emprego a palavra, quer dizer, da maneira mais específica e particular, “qualidade de quem demonstra obediente compreensão” e a palavra acatamento, “particularidade de quem contém brandura no modo de se perceber necessitado da compreensão a partir do outro”. Quando estamos em meio a formação intelectual e que por essa razão devemos adquirir quase que tudo formando assim um cabedal de conhecimento, não é hora para termos iniciativas precipitadas — eis aqui uma tentação comum àqueles que estão no processo de formação da intelecção, ao quererem a todo custo serem percebidos por suas insciências banhadas com boçalidade.
A título de exemplo, falando de homens casados. Se todas as suas ‘verdades’ não passaram pelo crivo da funda verdade conjugal encontrada nas Escrituras — “E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem[1] —, como intelectual cristão, não se pode considerá-lo. É revelado que “Não é bom que o homem esteja só”, logicamente essa palavra compreende absolutamente tudo acerca do homem, em termos de economia, isto é, na estruturação dos elementos de um todo. Como escreveu João Calvino: — “Não é bom que o homem esteja só. Então, Moisés explica o desígnio de Deus em criar a mulher, a saber, para que houvesse seres humanos na terra a cultivarem uma sociedade mútua entre si. No entanto, pode se levantar uma dúvida se esse desígnio deve se estender à descendência, pois as palavras simplesmente significam que, posto que não era conveniente ao homem viver sozinho, então lhe seria criada uma esposa que pudesse ser sua auxiliadora. Eu, entretanto, entendo que o significado é o seguinte: — que Deus, de fato, já no início da sociedade humana, projeta incluir outros seres humanos, cada um em sua própria posição. Portanto, o ponto de partida envolve um princípio geral: — que o homem foi formado para ser um animal social. Ora, a raça humana não podia existir sem a mulher; e, portanto, na conjunção dos seres humanos, esse sacro laço é especialmente notável, pelo qual o esposo e a esposa são combinados em um só corpo e uma só alma, como a própria natureza ensinou Platão, e outros da mais sólida classe de filósofos, a falar. Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a declaração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sendo uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um deve recebê-la como dita a si próprio: — que a solidão não é boa, excetuando somente aquele a quem se abstém, por um privilégio especial. Muitos creem que o celibato lhes traz vantagem e, por isso, se abstêm do casamento, para não virem a ser miseráveis. Não foram somente os escritores pagãos que definiram que, para viver uma vida feliz, não se deve ter esposa, mas o primeiro livro de Jerônimo, contra Joviniano, está repleto de petulantes reprimendas, pelas quais ele tenta fazer com que o santo matrimônio seja, ou odioso, ou infame. Que os fiéis aprendam a confrontar essas ímpias sugestões de Satanás com a declaração de Deus, pela qual ele ordena ao homem a vida conjugal, não para sua destruição, e sim para sua salvação[2]”.
Aquele que, se desenvolvendo inteligentemente (e espiritualmente), quando casado, sem o auxílio divino, dispensado e outorgado unicamente na pessoa da mulher (Gênesis 2:18), fere gravemente o empreendimento intrínseco da formação, do qual não se pode abjurar. Se desenvolver intelectualmente (e espiritualmente), para o homem casado, agindo sem a mulher, que foi dada por Deus, é fazer com que haja separação entre o cérebro e o pensamento, ou melhor, é dicotomizar a inteligência daquilo que é verdadeiro, já que aquilo que foi ‘ajuntado’ pela verdade, não pode ser separado pelo não acatamento[3].
Contudo, claramente se há incompatibilidade em sua determinação, e há, o homem só num certo grau a ‘separará’, ainda que, apenas no campo dos juízos e dos discursos, e por esse motivo, entrega-se à burrice contumaz todos que se comportam desse modo, desenvolvem apenas o pensamento sem a verdade; é a imitação do pensamento. O filósofo e teólogo francês, Antonin Dalmace Sertillanges, escreveu acerca do crivo da formação tendo a mulher como partícipe em todo o processo de intelecção do homem como um consagrado intelectual: — “[…] é preciso regrar-se de modo a estar tanto quanto possível nas imediações de pessoas superiores. A isso também a mulher do intelectual deve estar atenta. Que ela não abra a porta de sua casa às cegas; que seu tato seja tal qual um crivo; em vez da companhia das altas rodas, que ela estime a das almas elevadas; às pessoas que pretensamente têm muito espírito, que ela prefira pessoas de grande peso, instruídas e de juízo firme, sabendo-se que no mundo se passa tanto mais facilmente por espirituoso quanto mais radicalmente se deu cabo de sua inteligência[4]”. Com o que Calvino escreveu, complemento o pensamento da mulher quanto ‘idônea’: — “No hebraico, temos (כְּנֶגְדּֽוֹ׃)[5] que significa ‘como que oposto a’ ou ‘em oposição a’. A letra (כְּ) é usada para indicar uma semelhança. Embora alguns rabinos creiam que aqui ela está como uma afirmativa, contudo a tomo em seu sentido geral, indicando um tipo de contraparte equivalente, pois lemos que a mulher deve ser ‘oposta a’ ou ‘em oposição a’ o homem, porque ela lhe corresponde. Mas parece-me que se acrescenta a partícula de semelhança por ser uma forma de linguagem tomada do uso comum. Os tradutores gregos traduziram fielmente o sentido de “kat’ auton”; e Jerônimo por “A qual lhe seja igual”, pois a intenção de Moisés era destacar alguma igualdade. E daqui se refuta o erro de alguns que pensam que a mulher foi formada apenas para a propagação, e que restringem a palavra “bom”, recém–mencionada, à geração de uma descendência. Não creem que uma esposa fosse pessoalmente necessária a Adão, porquanto até aqui ele era isento de luxúria, como se ela lhe fosse dada simplesmente como companheira de quarto, e não, antes, para que ela fosse inseparável companheira de sua vida. Portanto, a letra (כְּ) é importante, ao mostrar que o casamento se estende a todas as partes e utilidades da vida. É frívola a explicação dada por outros, como se fosse dito: — ‘Que ela esteja pronta à obediência’, pois a intenção de Moisés era expressar muito mais que isso […][6]”.
Certamente, o primeiro relacionamento do graduando intelectual não é com a leitura, como a grande maioria pensa (razão de terem em suas prateleiras seus primeiros ídolos); aquela que o qualificará segundo o que ele é, sem prejudicar suas necessidades, sua intelectualidade (isto é, inteligência–verdade) e seus deveres de homem, é a sua mulher (esposa), e depois seus iguais criados à imagem de Deus[7]. Foi mencionado relacionamento, contudo, preferiria dizer cooperação acerca dos iguais, pois se relacionar é apenas com a esposa, mas sabemos que com os iguais é o cooperar serventemente, dado que sem serventia não se pode agir de modo intelectual, pois o intelectual cristão pertence sempre a outrem e sempre a seu tempo.
Ó, Senhor! Se soubéssemos unir-nos ou entreajudar-nos intelectualmente, ao invés de lermos tão superficialmente como ermitões acadêmicos ou desvalidos teologastros, quão ‘grande’ verdadeiramente seríamos!
Quer se trate de uma primeira formação, quer de uma cultura geral ou ainda que se esteja abordando uma nova disciplina, um problema até então deixado de lado, deve-se acreditar nos autores lidos e consultados para esse fim, seja ele qual for, muito mais do que criticá-los, e acompanhá-los em sua própria caminhada mais do que utilizá-los segundo os seus próprios interesses, que podem ser petulantes e miseráveis. Passar para a ação cedo demais, se precipitar, prejudica a aquisição dos tesouros da ciência; é sensato primeiramente submeter-se num primeiro momento àqueles que lhes servem porções da verdade, que lhes servem na ‘mesa do saber o pão fragmentado’. “É preciso acreditar em seu mestre”, diz Santo Tomás de Aquino, retomando Aristóteles. Ele próprio acreditou e se saiu muitíssimo bem. Santo Tomás de Aquino é um exemplo de docilidade. “Assim como a arte de comandar só se aprende na obediência, também assim o domínio do pensamento só se obtém pela disciplina”, diz Sertillanges. Sabemos que ninguém é infalível, mas o aluno o é ainda bem menos que o mestre e, se ele recusar a submissão obediente no processo de aprendizagem, para cada vez que ele estiver com a razão, outras vinte verdades lhe escaparão, pois ele terá sido vítima das aparências da intelectualidade que ainda não se formou. Mas vale ressaltar um bom conselho, é de se esperar a sensatez elementar de escolher com extremo cuidado os mentores[8] em quem teremos de confiar no processo de aprendizado e formação. Aconselhamos um autor para as doutrinas superiores; não se pode trancar-se nelas; porém três ou quatro autores que se conhecerá a fundo para a cultura geral, mais três ou quatro para a especialidade e por volta da mesma quantidade para cada problema que se apresentar, é o que basta, treze ou catorze autores. Recorrer-se-á a outras fontes para ‘informar–se’, somente, não para ‘formar-se’, e a sua atitude espiritual não será mais a mesma certamente; não há corrida para se ler mais (pelo contrário, deve-se ler pouco), mas para se criar o caminho preferível para mais máximas e prolóquios de vida. Contudo, muito e pouco se opõem apenas se considerados num mesmo campo do saber; é fundamental muito naquilo que é essencial, pois a obra intelectual no geral é vastíssima e profundíssima; mas ler pouco e conscientemente, com relação ao dilúvio de escritos cuja mais ínfima das especialidades basta para abarrotar as bibliotecas e as almas, não se deve ler ‘muito’ para o abarrotamento da alma pela qual advém a faculdade de raciocinar e apreender, se deve ler ‘pouco’ requer penetração, continuidade e esforço metódico, no intuito duma plenitude que responda ao apelo do Espírito e aos recursos que lhe aprouve comunicar-nos. “A ‘paixão’ da leitura, da qual muitos se orgulham como de uma valiosa qualidade intelectual, é, na verdade, uma tara; ela não difere em nada das demais paixões que dominam a alma, entretêm nela a perturbação, nela lançam e entrecruzam correntes confusas e esgotam-lhe as forças”, diz Sertillanges. Portanto, deve-se ter cuidado quanto a leituras vagas e dos pequenos trabalhos desordenados, porque a vocação intelectual não se satisfaz desse modo.
“Os atletas da inteligência, como os atletas do desporto, têm de prever privações, longos treinos e tenacidade (persistência) por vezes sobre–humana”, depreende Sertillanges.
Segundo, lê-se em vista de um dever.
As leituras que aproveitam as oportunidades exigem bom domínio mental. Aquele que lê com vistas a um trabalho está com o espírito dominado pelo que ele tenciona fazer, portanto, aqui, conceituo aquilo que podemos classificar como leituras tencionadas para o dever, para a tarefa; o intelectual não mergulha na correnteza, ele enche seu cantil nela; ele fica na margem, conserva sua liberdade de movimentos, reforça a cada empréstimo tomado a outros sua própria ideia em vez de afogá-la nas ideiasalheias, e sai de sua leitura enriquecido, não despojado, o que ocorreria se a fascinação da leitura prejudicasse a determinação de fazê-la em razão de sua serventia; ele também não é inconsequente, é dominador, podemos dizer que no máximo antecipado ou prudente no campo das ideias; prende-se numa espécie de miradouro, concebe vislumbres e cria dali em diante suas ferramentas de trabalho; é um modo de leitura sóbrio, temperante, não inconstante, tampouco vacilante!
Deve-se ler sempre inteligentemente, não impetuosamente ou partidariamente. Uma leitura desordenada enfraquece a alma como um veneno debilita o corpo, em vez de nutri-la, tal leitura entreva a intelecção.
Terceiro, lê-se como treinamento para o trabalho e para o bem.
As leituras de formação ou destreza pedem empenho incomensurável, a escolha, além de nossas regras gerais, deve se basear na experiência específica de cada um. O que deu certo para você uma vez, provavelmente dará certo novamente, mas não deve ser uma regra; devido ao pragmatismo — sendo geralmente ideias que pregam que a validade de uma doutrina é determinada pelo seu bom êxito prático —, ter facetas muitas vezes do obscurantismo. Uma influência pode se desgastar com o passar do tempo, porém, de início, ela fica reforçada; o hábito a acentua. Nessas observações já se inclui um princípio, que é o da escolha. “Quanto discernimento”, dizia Nicole, “deve-se empregar no que serve de alimento a nosso espírito e que deve ser a semeadura de nossos pensamentos! Pois o que lemos hoje com indiferença despertará quando for a ocasião e nos fornecerá, até sem que percebamos, pensamentos que serão fonte de nossa salvação ou de nossa perdição. Deus desperta os bons pensamentos para nos salvar; Satanás desperta os maus pensamentos cujas sementes ele encontra em nós (mesmos)[9]”. Logo, é preciso escolher, o que significa duas coisas: — “escolher os livros e escolher nos livros”.
Quanto a se escolher as obras (os livros), as compilações, seguem-se conselhos–guias: — não se confiar nas propagandas interesseiras, lucrativas, e endossar títulos provocantes. Ter conselheiros dedicados e conhecedores, é sempre o melhor caminho; saciar a sede unicamente nas fontes primárias e não ter relacionamentos senão com a elite dos pensadores, dos espíritos elevados; busque sempre a fina flor nos jardins do saber! No que se refere a ‘escolher nos livros’, esse é o dever seguinte a ‘escolher os livros’, lembrem-se dessa ordem: — “os […]” e “nos […]”. Onde nem tudo tem valor equivalente! Como escreveu Sertillanges: — “Nem por isso assumam a postura de juízes; sejam, antes, para com seu autor, um irmão, na verdade, um amigo, e um amigo inferior, já que, sob certos aspectos, pelo menos, o tomam por guia. O livro é um ancião; deve-se honrá-lo, dirigir-se a ele sem orgulho, escutá-lo sem prevenção, tolerar seus defeitos, procurar o grão na palha. Mas vocês, formandos da leitura e da intelecção, são homens livres; mantenham-se responsáveis: — resguardem-se o suficiente para preservar sua alma e, caso necessário, defendê-la”.
Quarto, lê-se por ser uma distração.
As leituras para distrair-se, para o prazer ou para oferecer alento diante do dissabor, dependem da liberdade. Nos momentos de depressão intelectual (ou espiritual) seus autores prediletos, suas páginas estimulantes, tê-los sempre à mão, sempre prontos para inocular-lhes uma nova vitalidade, é um método de grandiosíssimo valor e de inteligência ímpar. Existem pessoas a quem a peroração da “Oração Fúnebre ao Grande Condé” deu novo impulso por anos a fio, toda vez que sua inspiração esmorecia. A peroração (síntese) da “Oração” inclui em particular esta passagem: — “Venham e vejam o que nos resta de um nascimento tão augusto, de tanta grandeza, de tanta glória. Lance os olhos para todos os lados: — isso é tudo o que a magnificência e a piedade podem fazer para homenagear um herói: — títulos, inscrições, marcas vazias do que não é mais; figuras que parecem chorar em torno de um túmulo e imagens frágeis de uma dor que o tempo leva com tudo o mais; colunas que parecem querer levar ao céu o magnífico testemunho do nosso nada; e, finalmente, nada falta em todas essas honras, exceto aquele a quem elas são dadas. […] Aqui está o que nos levou nas chances; sob ele foram formados tantos capitães renomados que seus exemplos elevados às primeiras honras de guerra; sua sombra ainda poderia ter vencido batalhas; e agora em seu silêncio seu próprio nome nos anima”.
Outros, na parte espiritual, não resistem a tal e tal capítulo da “Imitação de Cristo”, como eu, que sempre vislumbro o sentido último das coisas celestiais, salutares, nas doces palavras do místico. “De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras, de cuja ignorância não seremos julgados? Grande loucura é descurarmos as coisas úteis e necessárias, entregando-nos, com avidez, às curiosas e nocivas. ‘Temos olhos para não ver’ (cf. Salmos 113:13)”. Ou quando ensina sobre o que verdadeiramente importa para a vida, “Ó, Deus de verdade, fazei-me um convosco na eterna caridade! Enfastia-me, muita vez, ler e ouvir tantas coisas; pois, em vós, acho tudo quanto quero e desejo. Calem-se todos os doutores, emudeçam todas as criaturas em vossa presença; falai-me vós só”. Ou, ainda, quando conclui humildemente seu empenho com docilidadeque lhe é própria, “Ah! Se se empregasse tanta diligência em extirpar vícios e implantar virtudes como em ventilar questões, não haveria tantos males e escândalos no povo, nem tanta relaxação nos claustros. Decerto, no dia do juízo, não se nos perguntará o que lemos, mas o que fizemos; nem quão bem temos falado, mas quão temos honestamente vivido. Dize-me: — Onde estão agora todos aqueles senhores e mestres que bem conheceste, quando viviam e floresciam nas escolas? Já outros possuem suas prebendas, e nem sei se porventura deles se lembram. Em vida pareciam valer alguma coisa, e hoje ninguém deles fala. Oh! Como passa depressa a glória do mundo! Oxalá a sua vida tenha correspondido à sua ciência; porque, destarte, terão lido e estudado com fruto. É verdadeiramente sábio aquele que faz a vontade de Deus e renuncia à própria vontade”.
Finalmente, diligencia e postula ao leitor, assim, como eu faço a você: — “Concedei-me, Senhor, que eu saiba o que devo saber, ame o que devo amar; fazei-me louvar o que mais vos agrada, estimar o que vós apreciais, desprezar o que a vossos olhos é abjeto. Não me deixeis julgar pelas aparências, nem criticar pelo que ouço de homens inexperientes, mas dai-me o discernimento certo das coisas visíveis e das espirituais, e sobretudo, o desejo de conhecer sempre vossa vontade (verdade)”.
Considerações finais.
Permitir-se obstinar em conceitos ínfimos ou amarrar-se por percepções e opiniões limitadas aceitando que o espírito se empedre em estruturas livrescas, criando em si o endurecimento do coração e o entorpecimento da mente, é uma marca indelével de inferioridade que contradiz claramente a vocação intelectual e a predisposição espiritual, isto é, a predileção para a verdade e inteligência.
Só se é realmente um leitor e intelectual se se pode dizer: — “Para mim, o viver é a verdade” (veja Filipenses 1:21).
Apêndice — Dezesseis conselhos de Tomás de Aquino para adquirir o tesouro da ciência.
Como me perguntaste, João, caríssimo irmão em Cristo, como deves estudar para adquirir o tesouro da ciência, eis os conselhos que te dou a esse respeito[10].
1 – Escolhas entrar no mar pelos regatos (córregos), não diretamente, pois é pelo que é fácil que convém chegar ao mais difícil. Este é, portanto, o meu conselho, e uma instrução para ti.
2 – Quero que sejas lento para falar e lento para dirigir-te ao parlatório (conversa).
3 – Guarda a pureza de consciência.
4 – Nunca deixes de dedicar-te à oração.
5 – Frequenta com amor tua cela[11], se queres ser introduzido na adega de vinhos[12].
6 – Mostra-te amável com todos.
7 – Não te preocupes com as ações dos outros.
8 – Não sejas familiar demais com ninguém, pois o excesso de familiaridade engendra o desprezo e dá ocasião para afastar-se do estudo.
9 – Não te envolvas de maneira alguma com as palavras e ações dos leigos.
10 – Evita sobretudo os passeios inúteis.
11 – Não deixes de imitar a conduta dos santos e dos homens de bem.
12 – Não consideres de quem ouves as coisas, mas tudo o que se disser de bom, confia-o à tua memória.
13 – Tudo que leres e ouvires, põe em prática, para o compreenderes.
14 – Esclarece tuas dúvidas.
15 – Esforça-te para armazenar tudo que puderes na biblioteca do teu espírito, como quem enche um vaso.
16 – Não busques o que está acima de ti.
Se seguires este caminho, enquanto tiveres vida, produzirás e multiplicarás folhas e frutos úteis na vinha do Senhor dos Exércitos. Se praticares estes conselhos, poderás alcançar o que desejas. Adeus.
Paz e graça.
Pr. Dr. Plínio Sousa.
[1] – Veja Marcos 10:8, 9 e Efésios 5:22 – 33.
[2] – João Calvino, Comentário de Gênesis, p. 63 – 64.
[3] – Lembrando que a palavra acatamento sugere aqui, “particularidade de quem contém brandura no modo de se perceber, necessitando da compreensão a partir do outro”.
[4] – A. D. Sertillanges. A Vida Intelectual — seu espírito, suas condições, seus métodos, Capítulo III — A Organização Da Vida, É Realizações Editora, 2016, p. 60.
[5] – Strong 5048 — kə–neḡ–dōw.
[6] – João Calvino, Comentário de Gênesis, p. 66.
[7] – Veja Gênesis 1:26 – 28.
[8] – Pessoa que inspira, estimula, cria ou orienta (ideias, ações, projetos, realizações, etc.).
[9] – Nicole, Essais de Morale Contenus en Divers Traités — Ensaios de Moral Constantes de Diversos Tratados, t. II. Paris, 1733, p. 244.
[10] – A. D. Sertillanges. A Vida Intelectual — seu espírito, suas condições, seus métodos, Kírion, 2019, p. 217.
[11] – Nos conventos, aposento de um religioso. Ou seja, quartinho, aposentos, alcova, esconderijo.
[12] – O celeiro de vinhos (ou adega de vinhos) de que aqui se fala, alusivamente ao Cântico dos Cânticos e ao comentário de São Bernardo, é o abrigo secreto da verdade, cujo cheiro atrai de longe a Esposa, isto é, a alma ardente; é o refúgio da inspiração, o lar do entusiasmo, do gênio, da invenção, da busca calorosa, é o palco dos jogos do espírito e de sua sábia embriaguez. Para ingressar nessa morada, deve-se deixar de lado as banalidades, deve-se praticar o retiro, cuja cela monástica é o símbolo. “Nas celas, como ao longo dos grandes corredores”, escreve Paul Adam, “o silêncio assemelha-se a uma pessoa magnífica, trajada da brancura das paredes, a velar”. Que está ela a velar, senão a prece e o trabalho? Sejam, pois, lentos para falar e lentos para ir ao local onde se fala porque muitas palavras fazem o espírito esvair-se como água.