João Calvino (1509 – 1564) foi o maior teólogo e expositor bíblico da Reforma Protestante. Através da academia teológica em Genebra e de seus muitos escritos, Calvino fez mais do que qualquer um para moldar a doutrina e o culto das Igrejas presbiterianas, reformadas e puritanas. O ensinamento de Calvino quanto ao culto reflete-se claramente em todos os diversos credos e confissões reformados: — A Confissão Francesa (1559), a Confissão Escocesa (1560), a Confissão Belga (1561), o Catecismo de Heidelberg (1536), a Segunda Confissão Helvética (1566), e os Padrões de Westminster (1643 – 1648).
É importante que os crentes que se autodenominam de reformados ou presbiterianos tenham, por várias razões, um certo conhecimento da perspectiva de Calvino sobre o culto (em particular do Princípio Regulador). Em primeiro lugar, porque vivemos dias de sério declínio no que concerne ao culto em muitas das denominações que são consideradas como reformadas. Muitos pastores, mestres e presbíteros das Igrejas reformadas rejeitam, tanto diretamente quanto por subterfúgios, o culto reformado em favor de uma concepção luterana ou episcopal. Segundo, por conta dessa decadência e ignorância tem havido um reducionismo do que significa ser reformado. Tanto para Calvino quanto para Knox, reformado significava mais do que uma soteriologia bíblica, significando também uma concepção bíblica de adoração (isto é, o Princípio Regulador). Hoje o termo reformado é usado para alguém que aceita meramente os cinco pontos do Calvinismo. Assim, temos hoje pastores e organizações que se vangloriam de ser verdadeiramente reformados ou neo–puritanos que, há alguns séculos, atrás teriam sido considerados anti–puritanos e não–reformados. Terceiro, hoje muitos têm a opinião de que a pureza do culto não deveria ser uma das maiores preocupações da Igreja. As pessoas que se preocupam com tais questões são frequentemente desdenhadas. Contudo, Calvino (no que respeita à religião cristã) considerava que o verdadeiro culto a Deus não era superado por nada em ordem de importância. Em “A Necessidade de Reformar a Igreja” ele escreve: ― “Se for questionado, então, quais são os principais motivos pelos quais a religião cristã tem uma duradoura existência entre nós, saber-se-á que os dois a seguir não apenas ocupam o lugar principal, mas compreendem neles todas as outras partes, e consequentemente toda a substância do cristianismo, a saber, o conhecimento, primeiro, do modo pelo qual Deus é devidamente adorado; e, segundo, de que fonte deve-se obter a salvação. Quando essas duas são mantidas fora de perspectiva, embora possamos nos gloriar no nome de cristão, as nossas profissões serão vazias e vãs”.
Segue-se uma série de citações de João Calvino que revelam a sua doutrina sobre o culto. Calvino foi o defensor e principal expositor do que viria a se chamar de Princípio Regulador do Culto.
[1] – Levítico 10:1.
Nadabe e Abiú, filhos de Arão. Registra-se aqui uma notável circunstância, através da qual se evidencia quão grandemente Deus abomina todo pecado que corrompe a pureza da religião. Era aparentemente uma transgressão leve usar fogo estranho para queimar incenso; por outro lado, a atitude impensada deles pareceria inescusável, pois Nadabe e Abiú certamente não desejaram insubordinada e intencionalmente contaminar as coisas sagradas, mas, como é na maioria das vezes em questão de novidade, ao se aplicarem tão avidamente a elas, a precipitação deles os induziu ao erro.
A severidade da punição, entretanto, não agradaria àqueles arrogantes que não hesitam em criticar desdenhosamente dos juízos de Deus; mas se ponderarmos em quão sagrado é o culto a Deus, a enormidade da punição não nos escandalizará de modo alguma. Além disso, era necessário que a religião deles fosse aprovada bem no seu começo, porque se Deus tivesse suportado a transgressão dos filhos de Aarão sem os ter punido, eles haveriam de negligenciar toda a Lei posteriormente.
Esta foi, portanto, a razão de tão grande severidade: — “os sacerdotes deveriam zelar fervorosamente contra toda profanação”. O crime deles foi especificado, a saber, que eles ofereceram incenso numa forma diferente da qual Deus havia designado, e consequentemente, embora tenham errado por ignorância, foram ainda assim declarados culpados pelos mandamentos de Deus, por terem se aplicado negligentemente àquilo que era digno da maior atenção. O fogo estranho distinguia-se do fogo sagrado que estava sempre queimando sobre o altar, não miraculosamente, como o querem alguns, mas pela constante vigilância dos sacerdotes. Agora, Deus havia proibido que se utilizasse qualquer outro fogo nas ordenanças, para excluir todos os rituais estranhos, e para mostrar o seu ódio por tudo que poderia ser proveniente de outra parte qualquer. Aprendamos, portanto, a dar ouvidos aos mandamentos de Deus para não corrompermos o seu culto com qualquer invenção estranha.
Mas se Ele vingou severamente esse erro, quão horrível condenação aguarda os papistas, que não se envergonham de defender obstinadamente tantas corrupções grotescas?
[2] – Levítico 22:32.
Não profanareis. Ao proibir a profanação de seu nome, Ele confirma com outras palavras o sentimento anterior, preservando, por elas, o seu culto de todo tipo de corrupção; para que seja conservado em pureza e integridade. A cláusula que vem imediatamente aposta tem o mesmo objetivo, porque os que não se desviam do culto legítimo e sincero santificam o nome de Deus. Que se observe isso cuidadosamente, sejam quantas forem as invenções dos homens, tantas serão as profanações do nome de Deus; pois embora os supersticiosos possam, pela própria imaginação agradar a si mesmos, toda a religião deles está ainda assim cheia de sacrilégios, pelo que Deus se queixa que a sua santidade é profanada.
[3] – Números 15:39.
E, primeiro que tudo, ao contrastar o coração e os olhos dos homens com a sua Lei, Ele mostra que o seu povo deverá estar satisfeito com o preceito que Ele prescreve, sem misturar com nada da imaginação deles; e, portanto, condena abertamente a futilidade de qualquer coisa que o homem invente para si mesmo, e conquanto lhes pareça agradável qualquer plano humano, Ele continua a repudiá-lo e a condená-lo. E isso está mais claramente explicitado na última palavra, quando Ele diz que os homens andam adulterando sempre que são governados por seus próprios conselhos. Tal declaração é digna da nossa especial atenção, porque enquanto os que cultuam Deus segundo sua própria vontade têm grande auto–satisfação, e enquanto consideram seu próprio zelo como muito bom e legítimo, eles nada mais fazem que se contaminar pelo adultério espiritual. Pois aquilo que o mundo considera ser a mais santa devoção, Deus com a sua própria boca condena como fornicação. Pela palavra olhos Ele quer significar inquestionavelmente a capacidade de discernimento do homem.
[4] – Deuteronômio 4:1.
Agora, pois, ó Israel, ouve. Ele requer que o povo se disponha a aprender, para que aprendam a servir a Deus, pois o princípio de uma vida boa e justa está em conhecer o que é agradável a Deus. A partir daí, então, Moisés começa a ordenar-lhes que procurem atentamente a orientação da Lei, e os admoesta a provarem pela inteireza das suas vidas que eles lograram apropriadamente da Lei. A promessa aqui introduzida, apenas os convida à obediência irrestrita pela esperança da promessa. O ponto central é que eles nada poderiam acrescentar nem diminuir da pura doutrina da Lei, o que não será possível a menos que o homem renuncie primeiramente aos seus sentimentos particulares, e feche os ouvidos a todas as imaginações dos outros. Ninguém, pois, será tido como (verdadeiro) discípulo da Lei, a não ser os que dela obtêm a sua sabedoria. É como se Deus os ordenasse a estarem contentes com os seus preceitos, pois não há outro modo de guardarem a Lei, exceto entregando-se totalmente ao ensinamento dela. Segue-se daí que só obedecem a Deus os que dependem unicamente da sua autoridade, e só honram legitimamente à Lei os que não aceitam nada que se oponha ao seu sentido natural. É uma passagem notável, condenando abertamente tudo aquilo que a ingenuidade humana possa inventar para o culto a Deus.
[5] – Deuteronômio 12:32.
Tudo o que eu te ordeno. Nessa breve cláusula ele [Moisés] ensina que nenhum outro ato de culto a Deus é legítimo, exceto o que tem o testemunho da sua aprovação em sua Palavra, e que a obediência é, por assim dizer, a mãe de toda piedade; é como se ele tivesse dito que todos os modos de devoção, não dirigidos por esse preceito, são absurdos e contaminados pela superstição. Daí deduzimos que a guarda do primeiro mandamento exige o conhecimento do verdadeiro Deus, derivado da sua Palavra, e associado à fé. Ao proibir o acréscimo ou diminuição de qualquer coisa, ele claramente condena como ilegítimo tudo o que os homens inventam pela sua própria imaginação.
[7] – 2 Samuel 6:6 – 12.
Ademais, devemos por isso concluir que nenhuma de nossas devoções serão aceitáveis a Deus a menos que estejam conformadas à sua vontade. Tal preceito lança por terra todas as invenções humanas do assim chamado culto a Deus do papado, que é tão cheio de pompa e tolice. Diante de Deus tudo isso nada mais é que puro lixo e verdadeira abominação. Tenhamos em mente, portanto, essa inequívoca regra: — “querer adorar a Deus segundo as nossas próprias idéias é simplesmente abuso e corrupção”. Antes, pelo contrário, precisamos ter o testemunho da sua vontade para seguirmos e submetermo-nos àquilo que nos tem ordenado. É assim que a adoração que prestamos a Deus será aprovada.
[8] – Isaías 29:13.
No segundo ponto, Deus, ao ser adorado por meio de invenções humanas, condena esse temor como supersticioso, embora os homens se esforcem em disfarçá-lo de pretensa religião, devoção, ou reverência plausíveis. Ele aponta a razão, que é, mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu. Eu considero que “melummadah” tem um sentido de passividade, pois Ele quer dizer que fazer dos mandamentos de homens, e não da palavra de Deus, a regra para adorá-lo, é uma subversão de ordem. A vontade do nosso Deus, entretanto, é que o temor e a reverência com que o adoramos devam ser regulados pela sua Palavra, e Ele não exige mais que uma mera obediência, pela qual devamos nos conformar, e todas as nossas atitudes, à Palavra, sem nos desviarmos para direita ou para a esquerda. Isso prova suficientemente que todos os que aprendem, por meio das invenções dos homens, como deveriam adorar a Deus, não são apenas néscios incontestes, mas desgastam-se em destrutivo labor, pois não fazem mais que provocar a ira de Deus. Ele, portanto, não poderia demonstrar mais claramente quão grande abominação sente pelo falso culto, do que pela tremenda severidade dessa punição.
[9] – Jeremias 7:21 – 24.
Ele acrescenta adiante que andaram nos seus próprios conselhos, e também, na dureza do seu coração maligno. Essa comparação agrava o pecado deles — os judeus preferiram seguir os seus próprios caprichos a obedecerem a Deus e aos seus mandamentos. Se algo tivesse sido colocado diante deles que os houvesse enganado e obscurecido a autoridade da Lei, ainda haveria uma desculpa, mas como nada havia que os impedisse de obedecer ao mandamento de Deus, exceto o seguirem à sua tola imaginação, eles ficaram totalmente inescusáveis. Pois que desculpa poderiam inventar? Que quiseram ser mais sábios que Deus! Que grande loucura foi essa, e quão diabólica? Mas o profeta não lhes deixa escapatória a não ser essa vã escusa, o que duplicou-lhes a culpa. Não há dúvida que pensaram ter seus corações bem ajustados ao propósito, mas ele aqui não lhes permite que julguem, antes os condena clara e merecidamente. Devemos prestar especial atenção a essa passagem, pois a maioria dos homens de hoje opõem as suas próprias fantasias à Palavra de Deus. Na verdade, os papistas pretextam a antiguidade; dizem que foram ensinados por seus antecessores, e ao mesmo tempo patrocinam os concílios e as ordenanças dos pais [da Igreja], contudo não há um deles sequer que não seja apegado às suas próprias invenções, e que não tome a liberdade, ou melhor, a desenfreada libertinagem, de rejeitar o que bem lhe apraz. Além disso, se se levar em conta a origem de todo o culto papal, ficará evidente que os primeiros a criarem tantas superstições estranhas foram movidos somente pela audácia e presunção, para que pudessem calcar aos pés a palavra de Deus. Por isso é que tudo se tornou corrupto, pois introduziram todas as estranhas fantasias de suas mentes. E vemos que os papistas hoje estão tão perversamente arraigados nos próprios erros que preferem a si mesmos, e às suas quinquilharias, a Deus. A situação é a mesma com todos os heréticos. Então, que deve ser feito? Como já disse, deve-se defender a obediência como a base de toda verdadeira religião. Se, então, por outro lado, desejarmos apresentar a Deus o nosso culto por Ele aprovado, aprendamos a lançar fora tudo que for de nós mesmos, de modo que a sua autoridade prevaleça acima de todas as nossas razões.
[10] – Jeremias 7:31.
O que nunca ordenei, nem me passou pela mente. Esse motivo deveria receber cuidadosa atenção, porque nele Deus corta do homem toda a possibilidade de inventar subterfúgios, pois, com uma única frase, Ele condena tudo aquilo que os judeus inventaram: ― O que nunca ordenei. Portanto, não é necessário, além desse, qualquer argumento para se condenar as superstições — que elas não são ordenadas por Deus — pois quando os homens dão a si mesmos o direito de adorarem a Deus segundo as suas próprias concepções fantasiosas, e não obedecem aos seus mandamentos, eles pervertem a verdadeira religião. E se esse princípio fosse adotado pelos papistas, todos aqueles fantasiosos modos de culto, a que absurdamente se aplicam, ruiriam por terra. É verdadeiramente algo horrível que os papistas procurarem se desincumbir de seus deveres para com Deus exercitando as suas próprias superstições. Há um enorme número delas, como bem se sabe, e como claramente se manifestam. Se admitissem esse princípio, que não podemos adorar a Deus corretamente exceto obedecendo a sua Palavra, eles seriam salvos desse seu tão grande abismo de erros. Então, as palavras do profeta são de grande importância, quando ele diz que Deus não ordenou tal coisa, nem jamais passou pela sua mente. É como se tivesse dito que os homens se arrogam muita sabedoria quando inventam o que Ele jamais exigiu, ou melhor, o que Ele jamais soube.
[11] – Jeremias 19:4, 5.
Deus, primeiramente, queixa-se que fora esquecido por eles, porque modificaram o culto que havia sido prescrito em sua Lei. E isso é o que deve ser cuidadosamente considerado, pois nenhum deles estaria disposto a confessar aquilo do que Jeremias acusava a todos; eles haveriam dito: ― Não temos nos esquecido de Deus, porque somos os filhos de Abraão. Mas o que queremos fazer é incrementar o seu culto, e por que isso nos haveria de ser censurado se não estamos satisfeitos com a nossa própria forma simples de adorar a Deus e acrescentamos várias outras formas? E adoramos a Deus não apenas no templo, mas também nesse lugar. Além disso, não poupamos nossos próprios filhos. Mas Deus, com uma única expressão, mostra que essas eram frívolas evasivas, pois Ele só reconhece aquilo que é recebido em obediência ao que Ele determina e ordena. Saibamos que Deus é esquecido tão logo os homens se desviem da sua pura Palavra, e que apostatam todos os que se desviam para cá e para lá, e não seguem ao que Deus aprova. Os judeus devem ter objetado, tal qual os papistas fazem hoje, que os seus modos de adoração não foram criados em seus dias, mas que os derivaram de seus ancestrais. Deus, porém, considerava como nada os reis e patriarcas que há muito tempo atrás se apartaram degeneradamente da verdadeira e genuína religião. Deve-se observar aqui que o conhecimento real está associado à verdade: — pois os que primeiramente inventaram novas formas de culto, seguiram sem dúvida às suas próprias e tolas imaginações; como quando se pergunta hoje aos papistas por que se fatigam tanto com suas superstições, o escudo deles sempre é a boa intenção: ― “Oh, achamos que isso seja agradável a Deus”. Deus, portanto, repudia as invenções deles como totalmente inúteis, pois nada possuem de sólido ou permanente.
[12] – Mateus 15:1.
Fariseus e escribas. Como o erro aqui corrigido não é muito comum, mas altamente perigoso, a passagem merece nossa particular atenção. Vemos a extraordinária insolência que os homens demonstram quanto à forma e à maneira de adorar a Deus; pois estão perpetuamente criando novos modos de culto, e quando alguém quer ser considerado mais sábio que os outros, demonstra a sua capacidade inventiva nesse assunto. Não falo de estranhos, mas dos próprios domésticos da Igreja, daqueles a quem Deus conferiu a honra particular de declararem com seus lábios a “Lei da Piedade”. Deus declarou o modo pelo qual deseja que devamos adorá-lo, e incluiu na sua Lei a perfeição de santidade. Contudo, um grande número de homens, como se obedecer a Deus e guardar o que Ele ordena fosse uma questão leve e trivial, colecionam para si mesmos muitos acréscimos advindos de todo lugar. Os que ocupam posição de autoridade apresentam as suas invenções com esse propósito, como se possuíssem alguma coisa mais perfeita que a Palavra do Senhor. A isso, segue-se o lento crescimento da tirania, pois ao imputarem as si mesmos o direto de exarar mandamentos, eles exigem rígida aderência às suas leis e não permitem que seja posto de lado um til sequer, seja por desobediência ou por esquecimento. O mundo não suporta a legítima autoridade, e rebela-se mais violentamente contra o jugo do Senhor, não obstante é facilmente e de boa–vontade que se embaraça nas ciladas das tradições inúteis; ou melhor, tal escravidão parecer ser, no caso de muitos, um objeto de desejo, ao passo que o culto a Deus, do qual o primeiro e supremo princípio é a obediência, é corrompido. Prefere-se a autoridade de homens aos mandamentos de Deus. As pessoas comuns são forçadas, com severidade e, portanto, tiranicamente, a darem total atenção a ninharias. Essa passagem nos ensina, primeiro, que todos os modos de culto inventados pelos homens não agradam a Deus, porque Ele determina que Ele apenas é que deve ser ouvido, para nos treinar e instruir na verdadeira piedade conforme o seu agrado; segundo, os que não estão satisfeitos com a única Lei de Deus, e se exaurem por obedecer às tradições dos homens, são inutilmente utilizados; terceiro, comete-se um ultraje contra Deus, quando as invenções dos homens são tão altamente exaltadas que a majestade da sua glória fica quase rebaixada, ou pelo menos a reverência a ela, diminuída.
[13] – Mateus 15:9.
E em vão me adoram. As palavras do profeta ocorrem, portanto, literalmente: ― “seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens”. Mas Cristo deu, fiel e exatamente, o sentido de em vão é Deus adorado, quando a doutrina é substituída pela vontade do homem. Por essas palavras, todos os tipos de pretensa religiosidade, como Paulo a denomina (Colossenses 2:23 – NVI) são claramente condenadas. Pois, conforme dissemos, como é Deus que determina que não será adorado de nenhum outro modo exceto conforme à sua própria determinação, Ele não pode tolerar a invenção de outros novos modos de culto. Tão logo os homens permitam a si mesmos vaguearem para além dos limites da palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem a adorá-lo, tanto mais pesada é a condenação que trazem sobre si mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é desonrada. Ensinando doutrinas que são preceitos de homens. Nessas palavras há o que se chama de aposição, pois Cristo lhes declara que erra aquele que apresenta, em lugar da doutrina, os preceitos de homens, ou que procuram achar neles a regra para adorar a Deus. Que se considere, portanto, como princípio estabelecido, visto que Deus tem maior estima pela obediência do que pelos sacrifícios (1 Samuel 15:22, 23), que todos os tipos de culto inventados pelos homens não têm, a seus olhos, a menor valia; mais ainda, que, assim como declara o profeta, eles são malditos e detestáveis.
[14] – Colossenses 2:22, 23.
A síntese é que o culto a Deus, a verdadeira piedade, e a santidade dos cristãos não consistem de bebida, comida e vestes, que são coisas transitórias, passíveis de corrupção e perecem pelo abuso. Porque o abuso se aplica apropriadamente às coisas que se destroem pelo seu uso. É por isso que as ordenanças não têm qualquer valor para as coisas que tendem a suscitar inquietação de consciência. Mas no papado dificilmente encontrar-se-ia qualquer [outro tipo] de santidade, exceto a que consiste das pequenas observâncias de coisas perecíveis. Uma segunda contestação é acrescida — que a origem delas [das ordenanças] está no homem, e não têm Deus como seu Autor; e com esse avassalador argumento ele derruba e aniquila todas as tradições dos homens. Por quê? Este é o raciocínio de Paulo: ― “Aqueles que trazem as consciências em cativeiro agravam a Cristo e esvaziam a sua morte. Pois o que é de humana invenção não compromete a consciência […]”. Observe, entretanto, quais são as cores que, segundo Paulo, compõem essa aparência de sabedoria. Ele menciona três: — culto de si mesmo, falsa humildade, e rigor ascético. Entre os gregos a palavra superstição recebe o nome de “ethelothreskeia” — termo que Paulo usa aqui.
Ele, entretanto, está de olho na etimologia do termo, pois “ethelothreskeia” denota literalmente um ato de culto voluntário, que os homens determinaram por si mesmos por sua própria opção sem a autorização de Deus.
As tradições humanas, portanto, nos são agradáveis, nesse aspecto, que elas são conforme o nosso entendimento, pois qualquer um encontrará na sua própria mente os seus primeiros esboços […]. Deveria ser ponto pacífico entre todos os piedosos que o culto a Deus não deveria ser avaliado segundo a nossa visão, e que, consequentemente, nenhum tipo de culto seria legítimo, tendo por base apenas o que nos é agradável. Também isso deveria ser um ponto pacífico comum — que devemos nos render humildemente a Deus, entregando-nos simplesmente à obediência de seus mandamentos, sem nos estribarmos em nosso próprio entendimento, etc. (cf. Provérbios 3:5) […].
Assim, nos dias de hoje, os papistas não têm falta de pretextos especiosos, através dos quais estabeleçam as suas próprias leis, embora sejam alguns delas ímpias e tirânicas, e outras tolas e levianas. Se, todavia, lhes concedermos tudo, ainda resta, não obstante, esta contestação de Paulo, que é em si mesma mais que suficiente para dispersar todas as suas nuvens de fumaça.
1 – As Institutas da Religião Cristã.
[1] – Imagens e figuras são contrárias à Escritura.
Agora devemos ter mente que a Escritura descreve repetidamente as superstições com essa linguagem: — elas são obras de mãos de homens, sem a autoridade de Deus (Isaías 2:8; 31:7; 37:19; Oséias 14:3; Miquéias 5:13); isso é para estabelecer o fato de que todos os atos de culto que os homens inventam por conta própria são detestáveis.
[2] – A verdadeira religião nos une a Deus como o único e uno Deus.
Mas a piedade, para permanecer num firme pedestal, mantém-se dentro de seus próprios limites. De modo semelhante, a mim me parece que a superstição é assim denominada porque, não satisfeita com o modo e a ordem descritas, empilha uma massa inútil de coisas sem sentido.
[3] – Honrar imagens é desonrar a Deus.
Por meio dessa Lei agrada-lhe prescrever aos homens o que é bom e justo, e assim obrigá-los a um padrão de certeza do qual ninguém pode licenciar-se para inventar qualquer tipo de culto que lhe agradar.
[4] – A suficiência da Lei.
Por outro lado, o Senhor, ao dar a Lei da perfeita justiça, vinculou todas as suas partes à sua vontade, mostrando assim que nada lhe é mais aceitável do que a obediência. Quanto mais inclinada for a engenhosidade enganosa da mente humana para imaginar os mais variados rituais pelos quais possa dEle merecer o bem, tanto, mas diligentemente devemos denunciar esse fato. O melhor remédio para curar tal erro será ter firmemente fixado na mente o seguinte pensamento: — “a Lei foi–nos divinamente entregue para nos ensinar a perfeita justiça; nenhuma outra justiça é nela ensinada além da que é conforme as exigências da vontade de Deus; é inútil, portanto, tentarmos novas formas de obras para obter o favor de Deus, cujo culto legítimo consiste unicamente em obedecer; mais exatamente, todo zelo por boas obras que vagueia do lado de fora da Lei de Deus é uma profanação intolerável da divina e verdadeira justiça”.
[5] – O culto espiritual do Deus invisível.
No mandamento anterior, Ele se declarou o único Deus fora do qual não se pode ter ou imaginar outros deuses. Agora Ele declara mais abertamente que tipo de Deus Ele é, e com que classe de culto deve ser honrado, para que não ousemos atribuir-lhe qualquer coisa carnal. Portanto, o propósito desse mandamento é que Ele não quer que o seu culto legítimo seja profanado por rituais supersticiosos. Em síntese, Ele nos quer apartar totalmente das mínimas observâncias carnais, que a nossa mente estúpida inventa, após imaginarmos rudemente a Deus. E, então, nos faz conformar ao culto legítimo: — que lhe é devido, a saber, um culto espiritual por Ele mesmo estabelecido. Ademais, Ele põe em relevo o mais palpável erro dessa transgressão, que é a idolatria exterior.
[6] – As tradições e invenções humanas no culto, condenadas pela Escritura e pelo próprio Cristo, 23 – 26). Apelar à autoridade da Igreja contradiz as provas da Escritura. Mas quão importantes achamos que seja para o Senhor ser privado do reino que reivindica tão firmemente por seu? Do qual é privado sempre que é adorado por leis humanamente criadas, posto que quer ser o único legislador de seu próprio culto. E para que ninguém considere a isso como de pouca monta, ouçamos em quão alta estima o Senhor o tem. O Senhor disse: — “Visto que este povo se aproxima de mim e com a sua boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu, continuarei a fazer obra maravilhosa no meio deste povo”; sim, obra maravilhosa e, portanto; de maneira que a sabedoria dos seus sábios perecerá, e a prudência dos seus prudentes se esconderá (Isaías 29:13, 14). Outra passagem: ― “em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:9). E verdadeiramente a causa dos filhos de Israel se corromperam com tantas idolatrias é atribuída a esta mistura impura pela qual eles transgrediram os mandamentos de Deus e fabricaram novos cultos. Em decorrência disso, é dito posteriormente que eles, atemorizados por esse castigo, adotaram os ritos prescritos na Lei; mas como não estavam adorando com pureza o verdadeiro Deus, diz-se duas vezes que eles o temeram e que eles não o temeram (2 Reis 17:24 – 25, 32 – 33, 41). Pelo que concluímos que uma parte da reverência que lhe é devida consiste simplesmente em adorá-lo da forma que Ele ordena, sem misturar as nossas próprias invenções. E os reis piedosos sempre são louvados pois agiram em conformidade com todos os seus preceitos, e não se desviaram nem para direita nem para a esquerda (cf. 2 Reis 22:1, 2; 1 Reis 15:11; 22:43; 2 Reis 12:2; 14:3; 15:3; 15:34; 18:3). Digo mais, não obstante muitas vezes no culto inventado pelos homens a impiedade não seja claramente vista, ainda assim ela é condenada severamente pelo Espírito, porque desvia-se do preceito de Deus. O altar de Acaz, cujo modelo fora trazido de Samaria (2 Reis 16:10), poderia à primeira vista parecer aumentar a dignidade do templo, porque a intenção de Acaz era oferecer nele sacrifícios ao único Deus, o que parecia fazer-se com mais esplendor do que no altar original. Contudo vemos como o Espírito abomina esse atrevimento pela única e exclusiva razão de que as invenções humanas no culto a Deus são outras tantas corrupções (2 Reis 16:10 – 18). E quanto mais a vontade de Deus nos é revelada, tanto menos inescusável é a nossa ousadia ao tentar alguma coisa.
[7] – O culto maligno é abominação a Deus.
Muitos se maravilham de que o Senhor ameace severamente com tão horríveis castigos o povo que o adorava com mandamentos de homens (Isaías 29:13, 14), e declare que em vão é adorado por preceitos humanos (Mateus 15:9). Mas se eles levassem em conta o que é depender exclusivamente das determinações de Deus em questões de religião (que é prerrogativa da sabedoria divina), compreenderiam de uma vez as razões pelas quais o Senhor abomina tais rituais perversos, que lhe são oferecidos segundo a vontade da natureza humana. Pois, ainda que neles haja alguma aparência de humildade na obediência às leis desse culto a Deus, eles, não obstante, em nada são humildes aos olhos de Deus, pois impõem a si mesmos essas mesmas leis a que obedecem. E esta é a razão pela qual Paulo nos admoesta tão diligentemente para não sermos enganados por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo as tradições dos homens (Colossenses 2:4 e seguintes], nem por aquilo que ele chama de “ethelothreskeia”, que é culto de si mesmo, inventado pelo homem à parte do ensinamento de Deus (Colossenses 2:23, 22). Assim é certamente. E é necessário que a nossa sabedoria, bem como a de todos os homens, seja tida por loucura, para que Ele seja reconhecido como o único sábio. Este, sem dúvida, não é o caminho adotado pelos que, com as suas tradições inventadas pelos caprichos dos homens, querem forçar uma fingida obediência a Deus, que é, na verdade, unicamente prestada aos homens.
[8] – Réplica à contraprova romanista.
Enfim, qualquer nova invenção com que os homens procuram honrar a Deus, nada mais é que uma contaminação da verdadeira santidade — As leis e tradições da Igreja, e a consciência cristã diante de Deus.
[9] – A questão básica.
É esta a questão a ser discutida: — se a Igreja tem ou não o legítimo direito de obrigar as consciências com as suas leis. Tal discussão não se refere à ordem política, mas preocupa-se apenas com o modo pelo qual Ele ordenou como deve ser devidamente adorado, e pelo modo como se deve preservar a liberdade espiritual que se refere a Deus. Tem-se tornado costume chamar de tradições humanas a todas as disposições relativas ao culto a Deus criadas pelos homens, à parte da sua Palavra. O nosso argumento é contra essas coisas, não contra as santas e úteis determinações da Igreja que servem para a preservação da disciplina, da honestidade ou da paz.
[10] – Orientações para determinar que constituições humanas são inadmissíveis.
Paulo emprega a primeira razão quando contende, na carta aos colossenses, contra os falsos apóstolos que procuravam oprimir as Igrejas com novas cargas (Colossenses 2:8). Ele usa a segunda razão na carta aos gálatas, num caso semelhante (Gálatas 5:1 – 12). Coerentemente, ele argumenta na carta aos colossenses que não devemos buscar no homem a verdadeira doutrina do culto a Deus, porque Deus tem fiel e plenamente nos instruído de que modo devemos adorá-lo. Para provar isso, ele diz no primeiro capítulo que o Evangelho contém toda a sabedoria pela qual o homem de Deus é aperfeiçoado em Cristo (Colossenses 1:28). No começo do segundo capítulo ele declara que todos os tesouros da sabedoria e do entendimento estão ocultos em Cristo (Colossenses 2:3). Disso logo conclui que os fiéis devem estar vigilantes para não se apartarem do aprisco de Cristo por causa da sedução da vã filosofia, conforme as ordenanças de homens (Colossenses 2:8). Mas, no final do capítulo, ele condena mais vigorosamente toda religião auto–imposta, isso é, a todo culto fingido, que os homens criaram por si mesmos ou receberam de outros, e a todos os preceitos que se atrevem a promulgar no que respeita ao culto a Deus (Colossenses 2:16 – 23) — Constituições eclesiásticas que autorizam cerimônias no culto são tirânicas, frívola e contrárias à Escritura.
[11] – Segundo esse princípio, as constituições romanas devem ser rejeitadas.
Ainda não falei das graves abominações com que eles têm se esforçado para destroçar toda a piedade. Com certeza não considerariam como crime tão atroz a falta de obediência, até mesmo à menor das tradições, se não cressem que o culto divino consiste dessas suas ficções. Portanto, que pecado cometemos se não queremos aceitar que a maneira legítima de servir a Deus seja ordenada pelo capricho dos homens, o que Paulo ensinou ser intolerável? Principalmente quando nos ordenam a adorar a Deus segundo “os rudimentos do mundo” (Colossenses 2:20), dos quais, testifica Paulo, são contra Cristo. Ademais, é bem sabido com que rigor extremo obrigam as consciências à obedecerem a tudo quanto ordenam. Quando nos opomos a isso, fazemos causa comum com Paulo, que não queria permitir de forma alguma que as consciências dos fiéis se submetessem aos caprichos dos homens (Gálatas 5:1).
[12] – As constituições papais negam a lei de Deus.
Mas há ainda algo pior. Uma vez que se tenha começado a definir a religião com essas tão vãs ficções, tal iniquidade é sempre acompanhada de uma outra odiosa impiedade, razão por que Cristo repreendeu os fariseus. É que eles tornavam nulos os mandamentos de Deus por causa das tradições dos homens (Mateus 15:3). Não quero contender com os nossos presentes legisladores usando as minhas próprias palavras; que prevaleçam, digo eu, se puderem de qualquer forma ficar limpos da acusação de Cristo.
[13] – As constituições papais são vazias e inúteis.
Eu sei que a minha descrição delas como tolas e inúteis não serão críveis à sabedoria da carne, que tem tanto deleite nelas que veria a Igreja como totalmente desfigurada se dela fossem retiradas. Mas isso é o que Paulo escreve: ― “Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético, e por isso, por causa do seu rigor, parecem ser capazes de dominar a carne” (Colossenses 2:23). Jamais deveríamos nos esquecer dessa salutar advertência! As tradições humanas, diz ele, ocultam o engano sob a aparência de sabedoria. De onde procede essa aparência enganosa? Do fato de terem sido inventadas por homens. O espírito humano reconhece nelas o que é propriamente seu e, uma vez reconhecido, abraça-o com mais prazer do que a qualquer outra coisa verdadeiramente excelente, mas não tão de acordo com a sua vaidade. Além disso, por se afigurarem capazes de refrear os deleites da carne, e a sujeitá-la a rigorosa abstinência, parecem ter sido sabiamente criadas. Mas, que diz Paulo quanto a isso? Rasga ele as suas máscaras, para que os ingênuos não sejam iludidos pela falsa aparência delas? Ao contrário, como pensava que era bastante contestá-las como invenções humanas, passou de largo sem nem as mencionar, como se as considerasse de nenhum valor (Colossenses 2:22). Paulo sabia, de fato, que todas as maneiras de servir a Deus inventadas pelos homens estavam condenadas, e que, quanto mais deleite propiciasse à natureza humana, mais tidas por suspeita seria aos fiéis; ele sabia que a falsa aparência de humildade exterior está tão distante da verdadeira humildade quanto é facilmente reconhecida como tal; ele, por fim, sabia que a disciplina elementar não deve ser mais estimada do que o sacrifício corporal. Ele queria que essas mesmas coisas — razão pela qual as tradições humanas eram tão estimadas pelos homens — servissem aos fiéis para contestá-las.
[14] – Aplicações gerais das percepções comuns.
Porque sempre que entra no coração dos homens a superstição de querer adorar a Deus com as suas próprias invenções, todas as leis decretadas com esse propósito degeneram imediatamente nesses graves abusos. Porque Deus não ameaça apenas a uma ou outra era, mas a todos os séculos e eras com essa maldição: — “perecerá a sabedoria e desvanecerá a inteligência de todos os que o adorarem com doutrinas de homens” (Isaías 29:13, 14). Essa cegueira é a causa daqueles que menosprezam as tantas advertências de Deus, e espontaneamente se enredam nessas armadilhas mortíferas, abraçarem todo tipo de absurdo. Mas se, deixarmos de lado as circunstâncias atuais, queiramos apenas compreender quais são as tradições de todas as épocas que deveriam ser repudiadas pela Igreja e por todos os homens piedosos, veremos que é certa e clara a definição de que são leis à parte da Palavra de Deus, leis feitas pelos homens, tanto para prescrever o modo de adorar a Deus quanto para subjugar as consciências, como se fossem coisas necessárias à salvação. Mas, no presente caso, suponha-se que, deixando de lado todas as máscaras e disfarces, atentássemos verdadeiramente para aquilo que deveria ser a nossa primeira preocupação e que é de grande importância para nós, isso é, o tipo de Igreja que Cristo queria para que pudéssemos nos moldar e ajustar ao padrão dela. Veríamos, então, facilmente que não é Igreja a que, ultrapassando os limites da palavra de Deus, formula, a seu irresponsável capricho, novas leis. Não foi a lei, uma vez dada à Igreja, instituída perpetuamente como boa? “Tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás” (Deuteronômio 12:32). E em outra passagem: ― “Nada acrescentes às suas palavras, para que não te repreenda, e sejas achado mentiroso” (Provérbios 30:6). Como não podem negar que isso foi dito à Igreja, que outra coisa, fazem senão apregoar a sua rebeldia, da qual vangloriam-se a ponto de que, mesmo depois dessas proibições, atrevem-se a acrescentar e misturar sua própria fantasia à doutrina de Deus?
Longe de nós esteja, assentir com a falsidade deles, pelas quais trazem tamanho insulto à Igreja! Compreendamos o quão falsamente se pretende o nome de ― Igreja sempre que se trata desse apetite e desejo dos homens — que não conseguem conservar-se dentro dos limites determinados por Deus, sem que, insolentemente, corram após as suas próprias invenções.
Nada há envolto, obscuro ou ambíguo nas palavras que proíbem à Igreja universal acrescentar ou subtrair qualquer coisa da palavra de Deus, quando estão envolvidos o culto ao Senhor e os preceitos de salvação. O Senhor, que há muito tempo atrás declarou que nada o ofendia mais do que ser adorado por rituais humanamente inventados, não se tornou falso a si mesmo.
[14] – As constituições romanas não remontam aos apóstolos, tampouco à “tradição apostólica”.
Mas remontar a origem dessas tradições (com as quais a Igreja tem sido desde então oprimida) aos apóstolos é pura falsidade e engano. Porque toda a doutrina dos apóstolos tem esse objetivo: — “não sobrecarregar as consciências com novas observâncias, nem contaminar o culto a Deus com as nossas próprias invenções”. Portanto, se houver na história e nos antigos registros algo digno de crédito, os apóstolos não somente ignoravam aquilo que os romanistas atribuem a eles, como sequer o ouviram.
Confissão de Fé em nome das Igrejas Reformadas da França (1662).
[1] – Do culto de Deus.
Agora — em conformidade com a sua declaração de que obedecer é melhor que sacrificar (1 Samuel 15:22), associada à sua imutável injunção para darmos ouvido ao que Ele ordena — se tivéssemos que oferecer da nossa parte um sacrifício designado e aceitável, argumentaríamos que não nos cabe inventar o que nos parecer bom, nem obedecer ao que pode ter sido inventado pela mente de outra pessoa, mas limitar-nos-íamos simplesmente à pureza da Escritura. Porquanto cremos que nada que dela proceda, mas que tenha sido apenas ordenado por autoridade de homem, não é digno de ser considerado como culto a Deus. O segundo axioma é que, quando supomos poder servir a Deus ao nosso próprio modo, Ele o repudia como corrupção. É essa a razão por que Ele exclama através do profeta Isaías que toda a verdadeira religião tem sido pervertida ao se obedecer aos mandamentos de homens (Isaías 29:13). E nosso Senhor Jesus Cristo confirma o mesmo ao dizer que em vão haveríamos de conhecer a Deus por meio das tradições humanas (Mateus 15:9). É, portanto, com boa razão, que a sua supremacia espiritual sobre as nossas almas permanece inviolável, e que nas mínimas coisas a sua vontade, assim como um cabresto, conduzirá nossas devoções.
[2] – Da tradição humana.
Temos nesta questão advertências tão notáveis da experiência comum, que estamos cada vez mais convencidos a não traspassar os limites da Escritura. Pois desde que os homens começaram a criar leis para regularem o ato de culto a Deus e subjugarem a consciência, não há mais fim nem conta delas, ao passo que, por outro lado, Deus tem punido tal temeridade, cegando-os com ilusões tais que podem fazê-los estremecer. Quando nos prestamos a examinar de perto o que são realmente as tradições humanas, descobrimos que são um abismo, e que o número delas é infindável. E há, contudo, abusos tão absurdos e enormes, que é espantoso o quanto os homens são estúpidos — não fosse Deus ter levado a efeito a vingança que anunciou pelo seu profeta Isaías, cegando e enfatuando o sábio que pretendesse adorá-lo observando mandamentos de homens (Isaías 29:14).
[3] – Das intenções idólatras.
Desde que os homens se apartaram da pura e santa obediência a Deus, descobriram que as boas intenções eram suficientes para aprovar qualquer coisa. Isso foi o escancarar da porta para todo tipo de superstições. Tem sido a origem do culto às imagens, da compra de missas, do encher da Igreja de pompa e ostentação, de correr daqui para lá em peregrinações, de fazer promessas por tudo que está ao alcance. Mas o abismo aqui é tão profundo que nos basta apenas citar alguns exemplos. Honrar a Deus por meio de humanas invenções está tão longe de ser legítimo que não haveria firmeza, nem certeza, terra firme ou ancoradouro na religião: — “tudo haveria de soçobrar (naufragar), e o cristianismo em nada seria diferente das idolatrias dos pagãos”.
A necessidade de Reformar a Igreja (1544).
Além do mais, a regra que faz a distinção entre o culto puro e o corrompido é de universal aplicação, para que não possamos adotar qualquer recurso que pareça adequar-se a nós mesmos, mas para atentarmos às injunções d‘aquele que é o único apto a prescreve-las. Portanto, se pretendemos ter a sua aprovação à nossa adoração, esse estatuto, que Ele em todo lugar reitera com o maior rigor, tem que ser cuidadosamente obedecido. Há uma dupla razão pela qual o Senhor, ao condenar e proibir todo culto fictício, exige que obedeçamos apenas à sua voz. A primeira tende grandemente a estabelecer a sua autoridade de modo que não sigamos nosso próprio arbítrio, mas dependamos inteiramente da sua soberania; e, em segundo lugar, a nossa insensatez é tanta que, ao sermos deixados livres, tudo de que somos capazes de fazer é desviarmo-nos. E uma vez que tenhamos nos apartado da reta vereda, não terá fim a nossa peregrinação, até que estejamos soterrados sob uma multidão de superstições. Portanto — para fazer valer o seu direito de domínio absoluto — é merecidamente que o Senhor impõe com rigor aquilo que Ele quer que façamos e rejeita, de pronto, todos os meios humanos em desacordo com seu mandamento. É também com justiça que define expressamente quais sejam os nossos limites, para que não nos seja permitido — ao inventarmos perversos modos de culto — provocar a sua ira contra nós. Bem sei quão difícil é persuadir o mundo de que Deus desaprova todos os modos de culto não sancionados expressamente pela sua Palavra. A persuasão oposta, que se lhes entranha, por assim dizer, nas suas próprias juntas e medulas, é de que tudo aquilo que fazem — desde que apresente algum tipo de zelo pela honra de Deus — tem em si mesmo aprovação suficiente. Mas Deus não apenas considera infrutífero, como também abomina totalmente, tudo o que por nossa própria conta consideramos ser zelo pelo seu culto. E se estiver em oposição ao seu mandamento, o que ganhamos indo contra ele? As palavras de Deus são claras e distintas: ― “o obedecer é melhor do que o sacrificar” (1 Samuel 15:22), “em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:9). Qualquer acréscimo à sua Palavra, especialmente nessa questão, é uma mentira. O mero ― culto de si mesmo (“ethelothreskeia”) é vaidade. É esse o veredito, e uma vez que o juiz haja decidido, não há mais o que debater. Havendo notado que a Palavra de Deus é o teste que distingue entre o seu culto verdadeiro e aquilo que é falso e corrompido, prontamente inferimos que a forma total do culto divino dos dias presentes, de modo geral, nada mais é que pura corrupção. Pois os homens não atentam ao que Deus ordenou, ou ao que Ele aprova, para poder servi-lo de modo apropriado, mas dão a si mesmos o direito de inventar modos de culto, e depois os impõem a Ele como substituto à obediência. Se pareço exagerar o que digo, que sejam examinados todos os atos pelos quais geralmente supõe-se adorar a Deus. Atrevo-me a deixar de fora a décima parte deles, como se não fosse o fruto à toa das suas próprias mentes. Que mais haveríamos de considerar? Deus rejeita, condena, abomina toda adoração fictícia, e usa a sua Palavra como cabresto para nos manter em absoluta obediência. Quando sacudimos de nós esse jugo, andamos erráticos após as nossas próprias fantasias e lhe oferecemos um culto, obra da precipitação humana, que, por mais que nos possa deleitar, é, à sua vista, frivolidade, ou antes, vileza e corrupção. Os advogados das tradições humanas descrevem-nas com belas e aparatosas cores, e Paulo certamente admite que eles portam uma certa aparência de sabedoria; mas como Deus valoriza a obediência mais que a todos os sacrifícios, o fato de não ser sancionado pelo mandamento de Deus deveria ser razão suficiente para a rejeição de qualquer modo de culto. Por havermos, com respeito ao culto, eliminado as observâncias vazias e infantis e adorado a Deus mais simplesmente, nossos adversários logo nos acusam de tendermos tão–somente à hipocrisia. Os fatos atestam que nada detratamos do culto espiritual a Deus. Pelo contrário, quando [algo] havia grandemente caído em desuso, nós o restabelecemos às suas antigas prerrogativas. O pior de tudo, entretanto, é que, não obstante tenha Deus com tanta frequência e rigor interditado todos os modos de culto prescritos pelo homem, a única forma de adoração que lhe foi prestada consistiu de invenções humanas. Que base têm, então, nossos inimigos para vociferarem que quanto a isso nós abandonamos a religião? Primeiro, não participamos minimamente em nada daquilo que Cristo condena como sem valor, quando declara ser inútil adorar a Deus com as tradições humanas. A coisa, talvez, teria sido mais fácil de suportar se a única consequência dela fosse apenas a perda dos esforços humanos em prol de um culto inútil; mas como, segundo tenho chamado a atenção, Deus em muitas passagens proíbe qualquer novo culto desprovido da sanção da sua Palavra, e declara-se gravemente ofendido pela presunção de tal culto inventado, ameaçando-o de severa punição, fica claro que a reforma que temos introduzido foi exigida por uma forte necessidade. Não estou inadvertido de quão difícil é persuadir o mundo de que Deus rejeita e até mesmo abomina tudo que, relativamente a seu culto, é inventando pela razão humana. O erro desse item deve-se a várias razões: ― “todo mundo tem-se em alta conta”, diz o antigo provérbio. Por essa causa é que o fruto da nossa própria mente nos delicia, e, além disso, como admite Paulo, esse pretenso culto tem aparência de sabedoria. Portanto, como tem ele em grande parte um esplendor exterior agradável à vista, é mais aprazível à nossa natureza carnal do que somente aquele que Deus requer e aprova, mas que é menos ostentoso. Entretanto, no julgamento dessa questão, nada há mais cegante e enganoso ao entendimento dos homens do que a hipocrisia. Embora demande-se dos verdadeiros adoradores a entrega do coração e da mente, os homens estão sempre querendo inventar um modo de servir a Deus com característica totalmente diferentes, sendo o objetivo deles, cumprirem em seu favor alguma observância física, mantendo a mente em si mesmos. Além disso, imaginam que por terem lhe forçado essa pompa exterior, ficaram, através desse artifício, livres se darem a si mesmos. Esta é a razão pela qual submetem-se a inumeráveis observâncias que os fatigam miseravelmente, sem medida e sem fim, e por que preferem andar erráticos num labirinto perpétuo, em vez de simplesmente adorarem a Deus em espírito e em verdade. Como poderíamos, sem que pecássemos, deixar de repreender a zombaria que é adorar a Deus com nada mais que gesticulações exteriores e fantasias humanas? Sabemos o quanto Ele odeia a hipocrisia, contudo ela imperava no culto fictício que se praticava em toda parte. Ouvimos os tão amargos termos com os quais o profeta protesta veementemente contra todo tipo de culto fabricado pela precipitação humana. Todavia uma boa intenção — isto é, uma insana licença para o homem ousar o que bem lhe aprouver — era considerada a perfeição da adoração. Pois é certo que no todo do culto que se havia firmado, dificilmente existia uma única observância que possuísse sansão autoritativa da palavra de Deus. Não devemos, quanto a essa questão, apoiar-nos em nosso próprio juízo, ou no de outros homens. Precisamos escutar a voz de Deus, e ouvir a sua consideração quanto a profanação do culto que se dá quando os homens, ultrapassando os limites da sua Palavra, atiram-se à larga em suas próprias invenções. As razões que Ele dá para punir os israelitas com cegueira, após terem perdido a pia e santa disciplina da Igreja, são duas, a saber, o predomínio da hipocrisia, e o ― “culto de si mesmo” (“ethelothreskeia”) significando assim uma forma de culto planejada pelos homens.
O verdadeiro método de se conceder paz à cristandade e reformar a Igreja (1548).
Devemos acrescentar que o conhecimento dessa questão demanda a sua própria explicação. Há dois aspectos principais. Primeiro, temos que assumir que o culto espiritual a Deus não consiste de cerimônias exteriores nem de quaisquer outros tipos de obras, sejam quais forem; e segundo, nenhum culto é legítimo a menos que seja formulado de tal maneira que tenha por sua única regra a vontade d‘aquele a quem é celebrado. Ambas essas proposições são absolutamente necessárias. Como nossos sentidos não vão além de nós mesmos e do mundo material, assim também avaliamos Deus por nós mesmos. É por essa razão que sempre nos deleitamos mais na aparência exterior, que não tem qualquer valor à vista de Deus, do que no íntimo culto do coração, que somente Ele aprova e exige. Por outro lado, é notória a libertinagem das nossas mentes, que prolifera, especialmente nessa época, onde nada tem sido suficientemente atrevido. Os homens se dão o direito de imaginar todos os tipos de culto, e de moldá-los e remodelá-los ao seu bel–prazer. Não é pecado exclusivo à nossa era, pois desde o princípio que o mundo porta-se licenciosamente assim para com Deus. Ele mesmo proclama que não há nada que valorize mais do que à obediência (1 Samuel 15:22). Por essa razão, a todos os modos de culto ideados contrariamente ao seu mandamento, Ele não apenas os reputa por vazios, mas condena claramente. Que necessidade tenho eu de aduzir provas numa questão tão óbvia? Passagens com esse sentido deveriam ser proverbiais entre os cristãos.
Breve formulação de uma Confissão de Fé.
Eu confesso que toda a regra do justo viver, como também da instrução em fé, estão majoritariamente consignadas nas Sagradas Escrituras, às quais, sem criminalidade, nada pode ser acrescentado nem subtraído. Por essa razão aborreço tudo que, da imaginação dos homens, poderia ser-nos imposto como artigos de fé, e nos obrigar a consciência por meio de leis e estatutos. E, portanto, repudio em geral tudo que tem sido introduzido no culto a Deus sem a autoridade da Palavra de Deus. Dessa sorte são todas as cerimônias papistas. Em resumo, abomino o jugo tirânico pelo qual as consciências miseráveis têm sido opressas — como a lei das confissões auriculares, celibato, e outras da mesma espécie.
Carta a Edward Seymour, Conde de Hertford, Duque de Somerset, Regente da Inglaterra durante e Menoridade de Edward VI (1548).
Glorificado seja Deus, que não necessitais aprender qual seja a verdadeira fé dos cristãos, e a doutrina que devem defender, parecendo que pelo vosso meio a verdadeira pureza da fé tem sido restaurada. Isso é, que consideramos a Deus como o único governante das nossas almas; que consideramos a sua Lei como a única regra e diretório para as nossas consciências, não o servindo segundo as tolas invenções de homens; que também segundo a sua natureza deve ser adorado em espírito e pureza de coração. Por outro lado, reconhecendo que nada há em nós mesmos exceto toda miséria, e que somos corruptos em todos os nossos sentimentos e afeições, de forma que as nossas almas são um vero abismo de iniquidade, totalmente sem esperança em nós mesmos; e que, havendo exaurido toda a presunção da nossa própria sabedoria, valor, ou poder em fazer o bem, devemos recorrer à fonte de toda a bênção, que está em Jesus Cristo.
“[…] é Deus que estatui que não será adorado de nenhum outro modo exceto conforme à sua própria determinação, Ele não pode tolerar a invenção de outros novos modos de culto. Tão logo os homens permitam a si mesmos andarem errantes para além dos limites da palavra de Deus, quanto mais labor e ansiedade demonstrem em adorá-lo, tanto mais pesada é a condenação que trazem sobre si mesmos, porque, por tais invenções, é que a religião é desonrada” (João Calvino).
Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.
[1] – Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto, 1ª Edição — Março de 2001, Traduzido do original em inglês: Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship de Brian M. Schwertley, Editora Os Puritanos, p. 85 – 102.