Não obstante alguns protestantes, felizmente, afirmarem o Sola Scriptura, muitos outros ensinam e praticam coisas que contradizem a doutrina de que a Escritura é o único padrão para a fé e para a vida. A negação implícita do Sola Scriptura, seja pelo ensino ou prática, pode ser encontrada em Igrejas luteranas, episcopais, evangélicas e até mesmo reformadas. Um breve exame de algumas dessas inconsistências nos auxiliará a entender esse ensino crucial.
A doutrina do Sola Scriptura é ao mesmo tempo afirmada e implicitamente negada nas declarações de fé da Igreja da Inglaterra (os Trinta e Nove Artigos da Religião – 1563, Revisão Americana de 1801) e dos luteranos (A Confissão de Augsburgo – 1530 – e a Fórmula de Concórdia – 1576, 1584). O sexto artigo dos Trinta e Nove Artigos contém uma boa declaração quanto à Bíblia ― “A Sagrada Escritura contém tudo o que é necessário à salvação: — portanto aquilo que não pode ser lido nela, nem por isso mesmo comprovado, não pode ser exigido de qualquer homem como artigo de fé a ser crido, nem ensinado como requisito necessário à salvação”.
A confissão luterana também contém uma forte afirmação do Sola Scriptura.
[1] – Nós cremos, confessamos, e ensinamos que a única regra e norma, segundo a qual todos os dogmas e doutores devem ser considerados e julgados, não é nenhuma outra senão as escrituras proféticas e apostólicas do Antigo e do Novo Testamentos, como está escrito: ― “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para os meus caminhos” (Salmos 119:105). E disse São Paulo: ― “ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue Evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema” (Gálatas 1:8). Dessa forma faz-se uma clara distinção entre as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, e todos os outros escritos; e somente a Sagrada Escritura é reconhecida como (único) juiz, norma e regra, segundo a qual, como (única) pedra de toque, todas as doutrinas devem ser examinadas e julgadas, quanto a se são piedosas ou ímpias, verdadeiras ou falsas.
1 – O Episcopalismo.
Infelizmente, os símbolos luterano e episcopal contradizem o Sola Scriptura ao discutirem sobre as cerimônias eclesiásticas, autoridade da Igreja e tradição. Os Trinta e Nove Artigos dão à Igreja uma autoridade que é claramente incompatível com Sola Scriptura. No Artigo 20 (Da Autoridade da Igreja), lê-se: — “A Igreja tem o poder de decretar ritos ou cerimônias, e de autoridade em controvérsias de fé; não lhe é legítimo, entretanto, ordenar qualquer coisa que seja contrária à Palavra de Deus escrita, nem interpretar contraditoriamente uma parte da Escritura em oposição a outra. Embora a Igreja seja testemunha e guardiã do Texto Sagrado, nada pode ela decretar contrário à Escritura, nem nada impor além dela como crença necessária à salvação”.
O Artigo 34 (Das Tradições da Igreja), declara: — “Não é necessário que as tradições e cerimônias sejam as mesmas em todos os lugares, ou exatamente iguais; porque têm sido sempre diversificadas e podem ser modificadas conforme a variedade de países, épocas, e modos dos homens, contanto que nada seja contrário à Palavra de Deus. Qualquer um que, pelo seu entendimento particular, voluntária e intencionalmente, violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja que não sejam conflitantes com a Palavra de Deus e ordenadas e aprovadas pela autoridade comum, deve ser repreendido abertamente (para que os outros temam fazer o mesmo) por ter ofendido a ordem comum da Igreja e ferido a autoridade do Magistrado e as consciências dos irmãos mais fracos. Toda Igreja, em particular ou nacional, tem autoridade para ordenar, modificar e abolir cerimônias e rituais seus, apenas ordenados pela autoridade humana, contanto que tudo seja feito para a edificação.
Os Trinta e Nove Artigos dão à Igreja um poder independente da Escritura. Os líderes eclesiásticos não podem somente determinar ou abolir rituais ou cerimônias ao bel–prazer da sua própria autoridade sem o consentimento da Escritura, eles também reservam para si mesmos o poder de disciplinar o fiel que violar abertamente as Tradições e Cerimônias da Igreja. Embora o seu próprio credo afirme que a Igreja não pode ordenar qualquer coisa que seja contrária à Palavra de Deus escrita, ele, não obstante, dá à hierarquia da Igreja um poder que não depende da Escritura. Assim, ao passo que o sexto artigo afirma a Sola Scriptura na teoria, os artigos 20 e 34 a negam na prática. Estes últimos não dão à Igreja apenas o poder de determinar ou abolir rituais ou cerimônias como lhe aprouver, sem qualquer sanção da Escritura, dão também à Igreja a autoridade de disciplinar o crente que violar abertamente as tradições e cerimônias da Igreja. O artigo 20 declara que à igreja não […] é legítimo […] ordenar qualquer coisa que seja contrária à Palavra de Deus escrita. Esta declaração (que segue a das confissões luteranas), entretanto, pouco consolo deveria dar aos puritanos e pactuantes que foram disciplinados e perseguidos por se recusarem a se submeter aos rituais e cerimônias ordenadas pela Igreja. A posição episcopal quanto à autoridade da Igreja e à tradição humana deriva de: — [1] – Uma visão deficiente da perfeição e suficiência da Escritura; [2] – De uma falsa compreensão quanto ao papel da razão humana em determinar as ordenanças da Igreja; [3] – De um conceito falacioso sobre os régios direitos do Cristo ressurreto.
Quando o assunto é governo e culto da Igreja, os teólogos e apologistas episcopais admitem abertamente que a Escritura não é uma regra perfeita para a Igreja, mas apenas uma regra parcial. Os anglicanos (pelo menos nas áreas de culto e governo) vêm a Bíblia como incompleta, vaga e genérica. Para eles a Bíblia é como um mapa defeituoso que mostra algumas grandes estradas, mas sem os seus detalhes. Para que o mapa se faça realmente útil é preciso que a liderança eclesiástica preencha as lacunas. A que detalhes se precisa chegar? Os bispos usarão a inteligência para recolherem alguma coisa dentre as tradições largadas no caminho pela Igreja antiga, e acrescentarão mais algumas adoráveis tradições inventadas por eles mesmos. Ignora-se o fato de Deus deixar mais do que claro o seu desprezo pelas invenções humanas em termos de ética e de culto (cf. Gênesis 4:3 – 5; Levítico 10:1, 2; Deuteronômio 4:2 e 12:32; Números 15:39, 40; 2 Samuel 6:3 – 7; 1 Crônicas 15:13 – 15; 1 Reis 12:32, 33; Jeremias 7:24, 31; Isaías 29:13; Colossenses 2:20 – 23).
Há um grande contraste entre o entendimento anglicano e reformado de Sola Scriptura e suficiência da Escritura. As confissões reformadas consideram que a perfeição e suficiência da Bíblia é extensiva não apenas à doutrina, mas também ao culto e ao governo da Igreja. Se o culto e o governo que Deus instituiu na sua palavra forem suficientes, é óbvio, então, que não é necessária qualquer suplementação. Davies diz que: ― “O princípio mais importante da autoridade absoluta da palavra de Deus nas Escrituras quanto a fé, ética, e culto foi expresso pelos puritanos. Apartar-se disso é a maior das impertinências e pretensões humanas, pois implica em conhecer a vontade de Deus mais do que o próprio Deus, ou, que a fraqueza herdada do pecado original não cega o juízo humano por causa do egocentrismo”.
O conceito episcopal quanto à autoridade da Igreja e à tradição também se origina do uso errôneo da razão humana. Os apologistas anglicanos do século dezesseis, na tentativa de refutarem o que eles achavam um biblicismo dogmático dos puritanos, deram à razão um papel autônomo da Escritura, ao determinar o culto e o governo da Igreja. Os puritanos não eram contra o uso da razão. Para eles, entretanto, a razão deveria se submeter sempre à Escritura e ser utilizada para deduzir a doutrina e a prática da própria Bíblia. Não deveria ser usada independentemente da Escritura. Os teólogos de Westminster referem-se aos patentes ensinamentos da Escritura e aos logicamente deduzidos dela (I.VI). Os apologistas anglicanos (especialmente Richard Hooker) usaram a razão para liberarem as autoridades da Igreja dos rígidos parâmetros da palavra a fim de justificar as suas tradições humanas (a maioria delas era a continuação de práticas medievais católico–romanas). Quanto a Richard Hooker (o maior dos apologistas anglicanos), disse Cook: — “Na defesa do anglicanismo, publicada em oito livros entre 1594 e 1600, Hooker identifica a natureza da Igreja como o verdadeiro ponto de controvérsia entre puritanos e anglicanos. Ele procura repudiar a posição de Cartwright de que a Escritura provê um protótipo permanente para o governo da Igreja. Esforçando-se sobremaneira para deslocar o argumento para fora da Escritura, Hooker defende que o princípio da razão natural tem a mesma validade que o princípio da revelação divina. Ele segue numa abordagem essencialmente não–reformada sobre a verdade, ensinando que algumas leis espirituais são conhecidas pela razão à parte da Escritura. Aqui temos a mente católica em funcionamento, buscando a sua força em Aquino, ela opera muito à vontade dentro da Igreja Inglesa de onde jamais fora banida, criando, na verdade, a característica mentalidade anglicana que tem controlado, desde então, a prática da Igreja da Inglaterra […]. Nada há de Sola Scriptura na argumentação de Hooker que apele (intime) ao Novo Testamento, pois a Constituição da Igreja diz, com efeito, que: ― Deus, ao entregar a Escritura à sua Igreja, deveria ter ab–rogado claramente entre eles a lei da natureza; a qual é um saber infalível impresso nas mentes de todos os filhos dos homens (Ecclesiastical Polity, Livro II, capítulo 8, 6). Dá-se à razão a mesma validade da Escritura considerando que, assim como a lei está acima da razão, citar a razão serve tanto quanto citar a Escritura; pois tudo aquilo que é razoável é da lei, seja quem for o seu autor”.
A errônea compreensão anglicana quanto ao pecado original segue passo a passo o uso impróprio da razão humana. Davies escreve que: ― “Os Anglicanos entendem que o homem é deficiente na sua capacidade espiritual; as suas outras capacidades foram enfraquecidas, mas não desesperadamente feridas e carecendo de transfusões de sangue redentor, como argumentavam os puritanos. Para os Anglicanos a razão do homem era inigualável; ela possuía a capacidade de distinguir, numa ordem moral, entre o bem e o mal. Cranmer defendia, por exemplo, que os homens poderiam escolher o bem sem o auxílio da graça santificadora. Jewel afirmava que a razão natural, mantida em seus limites, não é o inimigo, mas a filha da verdade de Deus. Donne asseverava que a razão tinha de ser empregada quando o sentido da Escritura não fosse claro, mas que, embora a nossa suprema corte […] de apelação final seja a Fé, a Razão é o seu delegado”. Como consequência do entendimento falho quanto aos efeitos da queda, os Anglicanos não entendem o perigo de permitirem que homens pecaminosos e caídos tenham o direito de determinar os rituais e as cerimônias da Igreja. Os puritanos reconheciam que a corrupção do coração humano tornou o homem incapaz de estabelecer formas aceitáveis de culto ao santo Deus trino. Não se pode confiar nem mesmo na mente regenerada para instituir autonomamente ordenanças de culto, pois ela permanece em luta contra os efeitos remanescentes da queda. A única coisa segura a ser feita sob tais circunstâncias é estudar e seguir o que Deus diz: ― “Confia no SENHOR de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento” (Provérbios 3:5).
Bushell escreveu: — “Portanto, de modo particular, o Princípio Regulador pode ser visto como uma inferência natural da doutrina da depravação total. Uma está ligada à outra, como, por exemplo, em Êxodo 20:25: ― “Se me levantares um altar de pedras, não o farás de pedras lavradas; pois, se sobre ele manejares a tua ferramenta, profaná-lo-ás”. Qualquer obra das mãos do próprio homem, que ele presume oferecer a Deus em adoração, é poluída pelo pecado e é, por essa razão, totalmente inaceitável”.
Não há dúvida que os pais da Igreja e os teólogos da era medieval, que acrescentaram muitas tradições humanas ao culto a Deus, pensavam que estavam inventando coisas que beneficiariam e edificariam a Igreja. O resultado, entretanto, foi a prostituta romanista, a “Igreja do Anticristo”. É por isso que as Escrituras advertem repetidamente ao povo da aliança para nada adicionarem nem subtraírem das leis, estatutos e ordenanças que Jeová prescreveu. Quando o SENHOR, teu Deus, eliminar de diante de ti as nações, para as quais vais para possuí-las, e as desapossares e habitares na sua terra, guarda-te que não te enlaces com imitá-las, após terem sido destruídas diante de ti; e que não indagues acerca de seus deuses, dizendo: — “Assim como serviram estas nações aos seus deuses, do mesmo modo também farei eu. Não farás assim ao SENHOR, teu Deus, porque tudo o que é abominável ao SENHOR e que Ele odeia fizeram eles a seus deuses, pois até seus filhos e suas filhas queimaram aos seus deuses. Tudo o eu te ordeno observarás; nada lhe acrescentarás, nem diminuirás” (Deuteronômio 12:29 – 32).
O conceito anglicano de autoridade e tradição da Igreja é uma rejeição implícita dos direitos régios de Jesus Cristo. Os teólogos episcopais não são obedientes à grande comissão que Jesus ordenou à Igreja: ― “Ensinando-os (as nações) a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado” (Mateus 28:20). A versão deles deveria ser: ― “Ensinando-os (as nações) a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado e tudo que os bispos decidirem que é edificante”. Quando líderes eclesiásticos ou qualquer outra pessoa definem leis humanas, ordenanças religiosas, cerimônias ou rituais paralelamente à vontade revelada de Deus, tais homens, então, estão atribuindo a si mesmos uma autoridade que pertence apenas a Deus. Somente Deus tem autoridade para declarar um ato como moral ou imoral. No entanto, homens e mulheres foram disciplinados e perseguidos simplesmente por recusarem submissão a ritos e cerimônias elaborados por homens. Todo uso de tradição humana no culto a Jeová é implicitamente romanista e tirânico. Embora não seja permitido a congregações evangélicas e Igrejas reformadas desviadas praticarem a tortura, o aprisionamento, o confisco de bens ou o banimento como forma de punirem os puritanos modernos, elas usam muitas formas sutis, e outras nem tão sutis, de coerção, de disciplina e de reprovação. Mesmo que muitas Igrejas desaprovem o culto bíblico, jamais devemos colocar a nossa fé nas ordenanças religiosas autônomas de homens finitos e pecadores. É maligno e tolo considerar as tradições humanas no culto como se fossem parte da Palavra de Deus. A fé bíblica deve ser direcionada apenas para Cristo e sua Palavra – pois toda a nossa obediência no culto a Deus é a obediência da fé. E se a Escritura é a regra de fé, a nossa fé com todo o seu zelo não deve ir além dela, do mesmo modo que a coisa regulamentada não pode ir além do regulamento. Só Jesus Cristo é o Rei e único legislador da Igreja. Sempre que os homens acrescentam leis humanas, ordenanças, rituais ou cerimônias ao que Cristo autorizou em sua Palavra, eles negam aos crentes a liberdade que têm em Cristo. Owen escreveu: — “O cerceamento da liberdade dos discípulos de Cristo, pela imposição de coisas que Ele não determinou, nem se fizeram necessárias pelas circunstâncias que as antecederam, são claras usurpações das suas consciências, destrutivas à liberdade que Ele lhes adquiriu, às quais se o dever deles é andar conforme a ordenança do Evangelho – submeter-se é pecaminoso”.
Hoje, ironicamente, os oponentes ao Sola Scriptura aplicada ao culto (isto é, o Princípio Regulador do Culto) têm tentado virar a mesa contra os puritanos modernos argumentando que são aqueles que querem regular o culto que cerceiam a liberdade dos crentes, por não darem oportunidade aos outros de introduzirem inovações humanas no culto a Deus. O problema com tal argumento é que liberdade, como definida pela Escritura, jamais significa libertação da lei de Deus, ou autonomia para se criar as próprias ordenanças ou cerimônias de culto à parte da Palavra de Deus. A liberdade bíblica refere-se a: — [1] – Nossa libertação de obedecer à lei como meio de justificação diante de Deus (Romanos 3:28); [2] – Nossa libertação do poder do pecado em nós (Romanos 6:6 e seguintes); [3] – Anulação da lei cerimonial, e, portanto, a nossa libertação dela; [4] – Nossa libertação em coisas que são verdadeiramente adiafóricas, isto é, coisas indiferentes (Romanos 14:20). Liberdade cristã jamais significa que nos é permitido fazer acréscimos aos preceitos morais de Deus ou ao que Deus prescreveu para o culto. Considerar que a atividade mais importante e reverente em que os cristãos se envolvem (no culto a Deus) está, de algum modo, dentro da esfera da adiaforia é completamente antibíblico e absurdo. A verdadeira liberdade advém do entendimento apropriado da doutrina reformada de Sola Scriptura e da doutrina correlata da suficiência da Escritura. Rawlinson escreveu dos puritanos: — “Além disso, eles criam com Calvino que, se Deus havia mostrado à luz esclarecedora de sua Palavra como Ele deveria ser adorado, era presunção desviante, fronteiriça à blasfêmia, que os homens fizessem acréscimos ao que Deus havia revelado. Em 1605 William Bradshaw disse que os puritanos declaravam e defendiam que a Palavra de Deus contida nos escritos dos profetas e apóstolos é absolutamente perfeita e dada por Cristo, o Cabeça da Igreja, sendo para a mesma o único Cânon e regra em todos os assuntos de religião, adoração e culto. E é ilegítimo tudo que for realizado nessa mesma adoração e culto que não puder ser justificado por esta palavra”. Passagens bíblicas tais como 2 Timóteo 3:15 – 17; 2 Pedro 1:19 – 21; Mateus 15:9, 13 e Apocalipse 22:19 eram utilizadas para justificar esta posição, ao passo que de passagens como Atos 2:41, 42; 1 Timóteo 2:1 e seguintes.; Efésios 5:19; Romanos 10:14, 15; 2 Timóteo 1:13 e Mateus 18:15 – 18, argumentava-se que havia seis ordenanças de culto evangélico: — “Oração, Louvor, Pregação, Batismo e Ceia do Senhor, Catequização e Disciplina”. Por não permitirem tradições humanas no culto, as Igrejas reformadas consistentes nunca disciplinam as pessoas por adotarem apenas o culto determinado na Escritura. É somente nas Igrejas que acrescentam as tradições humanas que os crentes são proscritos e perseguidos, e os ministros demitidos, por se apegarem ao puro culto evangélico. Como é possível acusar os puritanos modernos de negarem liberdade às pessoas quando toda culpa deles está em seguirem as leis e as ordenanças da Escritura sem a mescla humana? O valor de proporcionar sanção bíblica para todas as ordenanças do culto puritano era que isso dava a tais ordenanças uma augusta autoridade por meio daqueles que as usavam, como faziam os puritanos, na obediência da fé. Quem acrescenta invenções humanas no culto a Deus jamais pode lidar adequadamente com o assunto da autoridade por causa de suas inovações humanas. Não há autoridade divina que apoie as suas práticas nem a coerção envolvida na implementação e continuidade delas. John Owen escreveu: — “O princípio pelo qual a Igreja tem o poder de instituir qualquer coisa, ou cerimônia pertinente ao culto a Deus, tanto em conteúdo quanto em forma, além da obediência a essas circunstâncias como se elas atendessem a uma determinação do próprio Cristo, está na raiz de toda horrível superstição e idolatria, de toda confusão, sangue, perseguição e guerras, que têm por um bom tempo se espalhado sobre a superfície do mundo cristão”.
Aqueles que não consideram a autoridade divina como um item importante para o governo e culto da Igreja, deveriam se lembrar dos 18.000 homens, mulheres e crianças — dedicados presbiterianos escoceses (pactuantes) — que foram assassinados simplesmente por recusarem submissão às ordenanças humanas da liderança eclesiástica anglicana. Uma análise do culto ilegítimo criado pelo homem não apenas revela que ele, por sua natureza, não possui aval divino, e é, portanto, não apenas tirânico, mas também, antropocêntrico. Qual é o propósito de toda pompa, ostentação e espetáculo do culto anglicano? Qual a razão de catedrais ostentosas? Qual a razão de vitrais, de dias santos especiais, de gestos especiais e de especiais vestimentas sacerdotais? A razão não é que Deus ordenou tais coisas, e que, por isso, se deleita nelas. Deus não se impressiona de modo algum com catedrais fantásticas, sinos, incensos e vestimentas tolas. O propósito geral dos vários adornos feitos pelo homem (exceto no alto–clero) é exercer algum efeito psicológico no homem. A parafernália papista e os adereços medievais mantidos pelas Igrejas anglicanas eram considerados como auxílios à devoção. A intenção deles era suscitar o espanto, a reverência e a inspiração dos adoradores. A catedral, com a sua pompa e cerimônia, tinha função similar ao LSD, à maconha e aos efeitos de luz experimentados por um roqueiro num show de rock. Eles dão o tom emocional e manipulam o coração. No fundo todos esses tipos de recursos inventados pelo homem, para seu deleite e efeito psicológico, revelam falta de fé no poder do Espírito Santo que acompanha o puro culto evangélico. A pompa e a ostentação do culto anglicano é uma negação implícita de que o culto autorizado e designado por Jesus Cristo seja adequado ao objetivo a que se destina. George Gillespie adverte que as cerimônias humanas obscurecem a verdadeira religião. Ele escreveu: — “Mas entre tais coisas — que têm sido os amaldiçoados instrumentos da desolação da Igreja, os quais para alguns de vocês talvez não pareçam nada ferir nem causar o mínimo malefício — estão as cerimônias de ajoelhar-se no ato de receber a Ceia do Senhor, benzer ao batizar, episcopalianismo, dias santos, etc., que são infligidas sob o nome de coisas indiferentes; entretanto se se analisar cuidadosamente suas graves e variadas inconveniências, ter-se-á um pensamento bem ao contrário. As vãs aparências e sombras dessas cerimônias têm escondido e obscurecido a substância da religião; a verdadeira vida de piedade é extinguida e anulada pelo fardo dessas invenções humanas; por causa disso muitos que são tanto fiéis a Cristo quanto leais ao rei, sofrem ofensa, zombaria, vergonha, ameaça, perturbação; por causa delas os irmãos cristãos são ofendidos, e os fracos grandemente escandalizados; por causa delas os mais poderosos e sofridos ministérios do país são banidos, ou ameaçados de serem banidos de suas vocações; por causa delas os mais qualificados e esperançosos candidatos são impedidos de abraçarem o ministério; por causa delas os seminários [teológicos] estão tão corrompidos que pouca ou nenhuma boa planta pode nascer dali; por causa delas muitos são admitidos no ministério sagrado, ou papista ou arminiano, que ministram veneno e não comida ao rebanho; ou tolos ignorantes que dispensam ao faminto comida insalubre. Aos oponentes do Princípio Regulador do Culto, que acusam o culto puritano de minimalismo nominalista ou de iconoclastia daltônica, perguntamos o seguinte: — que melhorias humanas podem ser feitas ao cântico de salmos inspirados por Deus? Que acréscimos humanos auditivos, palatais e visuais são suplementos necessários ao ouvir a Palavra de Deus lida e pregada, e contemplar e banquetear-se na carne e no sangue do Filho de Deus? O que são edifícios deslumbrantes, tolas vestes papais, cerimônias e pompa romanista comparadas às ordenanças que nos foram dadas pelo nosso bendito Senhor e Salvador? Não seria suficiente colocar a nossa fé nas infalíveis palavras de Cristo? Temos também que colocá-la nas palavras e invenções dos homens?
Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.
[1] – Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto, 1ª Edição — Março de 2001; Traduzido do original em inglês: Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship de Brian M. Schwertley, Editora Os Puritanos, p. 24 – 42.