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Livro I — Capítulo 24.

“Em todas as coisas olha o fim, e de que sorte estarás diante do severo Juiz a quem nada é oculto, que não se deixa aplacar com dádivas, nem aceita desculpas, mas que julgará segundo a justiça”. Ó misérrimo e insensato pecador! Que responderás a Deus, que conhece todos os teus crimes, se, às vezes, te amedronta até o olhar dum homem irado? Por que não te acautelas para o dia do juízo, quando ninguém poderá ser desculpado ou defendido por outrem, mas cada um terá assaz (suficientemente) que fazer por si? Agora o teu trabalho é frutuoso, o teu pranto aceito, o teu gemer ouvido, satisfatória a tua contrição (pesar, dor).

Grande e salutar purgatório[1] tem nesta vida o homem paciente: — “se, injuriado, mas se dói da maldade alheia, que da ofensa própria; se, de boa vontade, roga por seus adversários, e de todo o coração perdoa os agravos; se não tarda em pedir perdão aos outros; se mais facilmente se compadece do que se irrita; se constantemente faz violência a si mesmo, e se esforça por submeter de todo a carne ao espírito”. Melhor é expiar já os pecados e extirpar os vícios, que adiar a expiação para mais tarde. Com efeito, nós enganamos a nós mesmos pelo amor desordenado que temos à carne.

Que outra coisa há de devorar aquele fogo senão os teus pecados? Quanto mais te poupas agora e segues a carne, tanto mais cruel será depois o tormento e tanto mais lenha ajuntas para a fogueira. “Naquilo em que o homem mais pecou, será mais gravemente castigado. Ali os preguiçosos serão incitados por aguilhões ardentes, e os gulosos serão atormentados por violenta fome e sede”. Os impudicos[2] e voluptuosos serão banhados em pez[3] ardente e fétido enxofre, e os invejosos uivarão de dor, à semelhança de cães furiosos.

Não há vício que não tenha o seu tormento especial. Ali, os soberbos serão acabrunhados[4] de profunda confusão, e os avarentos oprimidos com extrema penúria. “Ali será mais cruel uma hora de suplício do que cem anos aqui da mais rigorosa penitência”. Ali não há descanso nem consolação para os condenados, enquanto aqui, às vezes, cessa o trabalho e nos consolam os amigos. “Relembra agora e chora teus pecados, para que no dia do juízo estejas seguro entre os escolhidos”. Pois erguer-se-ão, naquele dia, os justos com grande força contra aqueles que os oprimiram e desprezaram (Sabedoria 5:1). Então se levantará, para julgar, aquele que agora se curvou humildemente ao juízo dos homens. Então terá muita confiança o pobre e o humilde, mas o soberbo estremecerá de pavor.

“Então se verá que foi sábio, neste mundo, quem aprendeu a ser louco e desprezado, por amor de Cristo”. Então dará prazer toda tribulação, sofrida com paciência, e a iniquidade não abrirá a sua boca (Salmos 106:42). Então se alegrarão todos os piedosos e se entristecerão todos os ímpios. Então mais exultará a carne mortificada, que se fora sempre nutrida em delícias. Então brilhará o hábito grosseiro e desbotarão as vestimentas preciosas. Então terá mais apreço o pobre tugúrio[5] que o dourado palácio. Mais valerá a paciente constância que todo o poderio do mundo. Mais será engrandecida a singela obediência que toda a sagacidade do século.

Mais satisfação dará a pura e boa consciência que a douta filosofia. Mais valerá o desprezo das riquezas que todos os tesouros da terra. Mais te consolará a lembrança duma devota oração que a de inúmeros banquetes. Mais folgarás de ter guardado silêncio, do que de ter falado muito. Mais valor terão as boas obras que as lindas palavras. Mais agradará a vida austera[6] e árdua penitência que todos os gozos terrenos. “Aprende agora a padecer um pouco, para poupar-te mais graves sofrimentos no futuro”. Experimenta agora o que podes sofrer mais tarde. “Se não podes agora sofrer tão pouca coisa, como suportarás os eternos suplícios? Se tanto te repugna o menor incômodo, que te fará então o inferno?”. Certo é que não podes fruir dois gozos: — “deleitar-se neste mundo, e depois reinar com Cristo”.

Se até hoje tivesses vivido sempre em honras e delícias, que te aproveitaria isso se tivesses que morrer neste instante? Logo, tudo é vaidade, exceto amar a Deus e só a Ele servir. Pois quem ama a Deus, de todo o coração, não teme nem a morte, nem o castigo, nem o juízo, nem o inferno, porque o perfeito amor dá seguro acesso a Deus. “Mas quem ainda se delicia no pecado, não é de estranhar que tema a morte e o juízo”. Todavia, é bom que, se do mal não te aparta o amor, te refreie ao menos o temor do inferno. Aquele, porém, que despreza o temor de Deus, não poderá por muito tempo perseverar no bem, e depressa cairá nos laços do demônio.

Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa[7].

[1] – Tomás de Kempis, 1380 – 1471, Imitação de Cristo, p. 24 – 26.

[1] – Drástico, peremptório, rigoroso.

[2] – Exibidos, atrevidos.

[3] – Piche — uma espécie de resina.

[4] – Abatido, humilhado, envergonhado, prostrado — perderá a alegria; será entristecido.

[5] – Abrigo, aposento, casebre, choça, choupana.

[6] – Restrita, recolhida, discreta.

[7] – Revisor — notas e significações.

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