Livro I — Capítulo 2.
Todo homem tem desejo natural de saber; mas que aproveitará a ciência, sem o temor de Deus? Melhor é, por certo, o humilde camponês que serve a Deus, do que o filósofo soberbo que observa o curso dos astros, mas se descuida de si mesmo. Aquele que se conhece bem se despreza e não se compraz em humanos louvores. Se eu soubesse quanto há no mundo, porém, me faltasse a caridade [amor], de que me serviria isso perante Deus, que me há de julgar segundo minhas obras?
Renuncia ao desordenado desejo de saber, porque nele há muita distração e ilusão. Os letrados gostam de ser vistos e tidos por sábios. Muitas coisas há cujo conhecimento pouco ou nada aproveita à alma. E mui insensato é quem de outras coisas se ocupa e não das que tocam à sua salvação. As muitas palavras não satisfazem à alma, mas uma palavra boa refrigera o espírito e uma consciência pura inspira grande confiança em Deus.
Quanto mais e melhor souberes, tanto mais rigorosamente serás julgado (cf. Tiago 3:1), se com isso não viveres mais santamente. Não te desvaneças, pois, com qualquer arte ou conhecimento que recebeste. Se te parece que sabes e entendes bem muitas coisas, lembra-te que é muito mais o que ignoras. Não te presumas de alta sabedoria (Romanos 11:20); antes, confessa a tua ignorância. Como tu queres a alguém te preferir, quando se acham muitos mais doutos do que tu e mais versados na Lei? Se queres saber e aprender coisa útil, deseja ser desconhecido e tido por nada.
Não há melhor e mais útil estudo que se conhecer perfeitamente e desprezar-se a si mesmo. Ter-se por nada e pensar sempre bem e favoravelmente dos outros, prova é de grande sabedoria e perfeição. Ainda quando vejas alguém pecar publicamente ou cometer faltas graves, nem por isso te deves julgar melhor, “pois não sabes quanto tempo poderás perseverar no bem”. Nós todos somos fracos, mas a ninguém deves considerar mais fraco que a ti mesmo.
Devoção.
O devoto Frei Rufino, naquela visão que teve da glória à qual chegaria o grande São Francisco por sua humildade, fez-lhe esta pergunta: — “Meu caro pai, eu vos suplico dizer-me na verdade que opinião tendes de vós mesmo”. E o santo lhe disse: — “Na verdade eu me considero o maior pecador do mundo e aquele que menos serve a Nosso Senhor”. Mas, replicou Frei Rufino, “como podeis dizer isto de verdade e em consciência, uma vez que muitos outros, como se pode ver claramente, cometem muitos pecados graves, dos quais, graças a Deus, estais isento?”. Ao que São Francisco respondeu: — “Se Deus tivesse favorecido esses outros, dos quais falas, com tanta misericórdia como me favoreceu, estou certo de que, por maus que sejam agora, eles teriam sido muito mais reconhecidos pelos dons de Deus do que eu, e o serviriam muito melhor do que eu. E se meu Deus me abandonasse, eu cometeria mais maldades do que nenhum outro […]”. Ora, tenho por oráculo o sentimento desse grande doutor na ciência dos santos que, nutrido na escola do crucifixo, só respirava as divinas inspirações (Amour de Dieu, II, capítulo XI, I, 413 e 414).
Piedade.
Nas almas dos pecadores reinam aqueles princípios diabólicos que os faria arder agora mesmo no inferno, “se não fosse a restrição imposta por Deus”. Existe na própria natureza carnal do homem uma potencialidade alicerçando os tormentos do inferno. Há aqueles princípios corruptos que agem de maneira poderosa sobre eles, que só dominam completamente, e que são sementes do fogo do inferno. Esses princípios são ativos e poderosos, de natureza extremamente violenta, e “se não fosse à mão restringidora do Senhor sobre eles, seriam logo destruídos”. Iriam arder em chamas da mesma forma que a corrupção e a rebeldia fazem arder os corações das pessoas condenadas, gerando nelas os mesmos tormentos. As almas dos ímpios são comparadas nas Escrituras com o mar agitado (cf. Isaías 57:20). “Por enquanto, Deus controla as iniquidades deles pelo seu imenso poder, como faz com as ondas enfurecidas do mar, dizendo: — Virão até aqui, mas não prosseguirão”. Mas “se Deus retirasse deles seu poder refreador, seriam todos tragados por elas”. O pecado é a ruína e a miséria da alma. Ele é destrutivo pela própria natureza. E “se Deus o deixasse sem controle, não seria preciso mais nada para tornar as almas humanas absolutamente miseráveis”. A corrupção no coração do homem é algo cheio de fúria incontrolável e sem freio. Enquanto os pecadores viverem aqui, essa fúria será como fogo “reprimido pelas restrições divinas”. Ao passo que, se fosse liberada, incendiaria o curso natural da vida. E como o coração é um poço de pecado, este mesmo pecado iria imediatamente transformar a alma num forno incandescente ou numa fornalha de fogo e enxofre, caso “não fosse restringido” (EDWARDS, 2019, p. 5).
Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.
[1] – Tomás de Kempis, 1380 – 1471, Imitação de Cristo, p. 2 – 3.