Livro I — Capítulo 25.
“Sê vigilante e diligente no serviço de Deus, e pergunta-te a miúdo: — a que vieste, para que deixaste o mundo? Não será para viver por Deus e tornar-te homem espiritual?”. Trilha, pois, com fervor o caminho da perfeição, porque em breve receberás o prêmio dos teus trabalhos; nem te afligirão, daí por diante, temores nem dores. Agora, terás algum trabalho; mas depois acharás grande repouso e perpétua alegria. “Se tu permaneceres fiel e diligente no seu serviço, Deus, sem dúvida, será fiel e generoso no prêmio”. Conserva a firme esperança de alcançar a palma; não cries, porém — [1] – “segurança, para não caíres em tibieza ou presunção — Certo homem que vacilava muitas vezes, ansioso, entre o temor e a esperança, estando um dia acabrunhado pela tristeza, entrou numa Igreja, e diante dum altar, prostrado em oração, dizia consigo mesmo: — “Oh! se eu soubesse que havia de perseverar!”. E logo ouviu em si a divina respostas: — “Se tal soubesses, que farias?”. Faze já o que então fizeras, e estarás bem seguro. Consolado imediatamente, e confortado, abandonou-se à divina vontade, e cessou a ansiosa perplexidade. Desistiu da curiosa indagação acerca do seu futuro aplicando-se antes em conhecer qual fosse a vontade e o perfeito agrado de Deus para começar e acabar qualquer boa obra”.
“Espera no Senhor e faze boas obras, diz o profeta, habita na terra e serás apascentado com suas riquezas” (Salmos 36:3). Há uma coisa que esfria em muitos o fervor do progresso e zelo da emenda: — “o horror da dificuldade ou o trabalho da peleja”. Certo é que, mais que os outros, aproveitam nas virtudes aqueles que com maior empenho se esmeram em vencer a si mesmos naquilo que lhes é mais penoso e contrariam mais suas inclinações. Porque tanto mais aproveita o homem, e mais copiosa graça merece, quanto mais se vence a si mesmo e se mortifica no espírito.
Não custa igualmente a todos se vencer e mortificar-se. Todavia, o homem diligente e porfioso[1] fará mais progressos, ainda que seja combatido por muitas paixões, que outro de melhor índole, porém menos fervoroso em adquirir as virtudes. Dois meios, principalmente, ajudam muito a nossa emenda, e vêm a ser: — “apartar-se valorosamente das coisas às quais viciosamente se inclina a natureza, e porfiar em adquirir a virtude de que mais se há mister. Aplica-te também a evitar e vencer o que mais te desagrada nos outros”.
Procura tirar proveito de tudo: — “se vês ou ouves relatar bons exemplos, anima-te logo a imitá-los; mas, se reparares em alguma coisa repreensível, guarda-te de fazê-la, e, se em igual falta caíste, procura emendar-te logo dela”. Assim como tu observas os outros, também eles te observam a ti. Que alegria e gosto ver irmãos cheios de fervor e piedade, bem acostumados e morigerados[2]! Que tristeza, porém, e aflição, vê-los andar desnorteados e descuidados dos exercícios de sua vocação! Que prejuízo descurar os deveres do estado e aplicar-se ao que Deus não exige!
Lembra-te da resolução que tomaste, e põe diante de ti a imagem de Jesus crucificado. “Com razão te envergonharás, considerando a vida de Jesus Cristo, pois até agora tão pouco procuraste conformar-te com ela, estando há tanto tempo no caminho de Deus”. O religioso que, com solicitude e fervor, se exercita na santíssima vida e paixão do Senhor, achará nela com abundância tudo quanto lhe é útil e necessário, e escusará buscar coisa melhor fora de Jesus. Oh! Se entrasse em nosso coração Jesus crucificado, quão depressa e perfeitamente seríamos instruídos!
O religioso cheio de fervor tudo suporta de boa vontade e executa o que lhe mandam. O relaxado e tíbio, porém, encontra tribulação sobre tribulação, sofrendo de toda parte angústias: — “é que ele carece da consolação interior e lhe é vedado buscar a exterior”. O religioso que transgride a regra anda exposto a grande ruína. Quem busca a vida cômoda e menos austera[3], sempre estará em angústias, porque uma ou outra coisa sempre lhe desagrada. Que fazem tantos outros religiosos que guardam a austera disciplina do claustro[4]? “Raro saem, vivem retirados, sua comida é parca[5], seu hábito grosseiro, trabalham muito, falam pouco, vigiam até tarde, levantam-se cedo, rezam muito, lêem com frequencia e conservam-se em toda a observância”.
Olha como os cartuxos[6], os cistercienses[7], e os monges e monjas das diversas ordens se levantam todas as noites para louvar o Senhor. Vergonha, pois, seria, se tu fosses preguiçoso em obra tão santa, quando tamanha multidão de religiosos entoa a divina salmodia. Oh! Se nada mais tivesses que fazer senão louvar a Deus nosso Senhor de coração e boca! Oh! Se nunca precisares comer, nem beber, nem dormir, mas sempre pudesses atender aos louvores de Deus e aos exercícios espirituais! Então serias muito mais ditoso do que agora, sujeito a tantas exigências do corpo! Oxalá não existissem tais necessidades, mas houvesse só aquelas refeições que — ai! — tão raro gozamos!
“Quando o homem chega ao ponto de não buscar sua consolação em nenhuma criatura, só então começa a gostar perfeitamente de Deus, e anda contente, aconteça o que acontecer”. Então não se alegra pela abundância, nem se entristece pela penúria, mas confia inteira e fielmente em Deus, que lhe é tudo em todas as coisas, para quem nada perece nem morre, mas por quem vivem todas as coisas e a cujo aceno, com prontidão, obedecem.
“Lembra-te sempre do fim, e que o tempo perdido não volta. Sem empenho e diligência, jamais alcançarás as virtudes”. Se começares a ser tíbio[8], logo te inquietarás. Se, porém, procurares afervorar-te, acharás grande paz e sentirás mais leve o trabalho com a graça de Deus e o amor da virtude. “O homem fervoroso e diligente está preparado para tudo. Mais penoso é resistir aos vícios e às paixões que afadigar-se em trabalhos corporais. Quem não evita os pequenos defeitos pouco a pouco cai nos grandes”. Alegrar-te-ás sempre à noite, se tiveres empregado bem o dia. Vigia sobre ti, anima-te e admoesta-te e, “vivam os outros como vivem, não te descuides de ti mesmo. Tanto mais aproveitarás, quanto maior for a violência que te fizeres”. Amém.
Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa[9].
[1] – Tomás de Kempis, 1380 – 1471, Imitação de Cristo, p. 26 – 29.
[1] – Constante, contínuo.
[2] – Regrado.
[3] – Sóbria, discreta, séria.
[4] – Monastério — residência solitária.
[5] – Pouca, insuficiente, escassa, moderada, minguada, acanhada.
[6] – A Ordem dos Cartuxos (Latim – “Ordo Cartusiensis”), é uma ordem religiosa semi–eremítica de clausura monástica e de orientação puramente contemplativa surgida no século XI; indivíduos que, usualmente por penitência, religiosidade, misantropia ou simples amor à natureza, vive em lugar deserto, isolado.
[7] – Ordem de Cister, ou Ordem Cisterciense (“Ordo cistercienses”), é uma ordem religiosa monástica reformada.
[8] – Fraco, frouxo, mole.
[9] – Revisor — notas e significações.