1 – O texto afirma que a palavra de Deus existe em duas formas: — “escrita” (ἔγγραφον) e “não escrita” (ἀγραφον). Até aqui, a discussão se concentrou em como a Sagrada Escritura incorpora a Palavra escrita de Deus, demonstrando sua autoridade, perfeição, natureza divina e propósito, bem como sua posição estabelecida no cânone. Agora, o foco se desloca para a Palavra não escrita (ἀγράφῳ), também referida por muitos como tradições.
2 – Em sentido amplo, tradição se refere a qualquer doutrina, independentemente de estar escrita no Novo ou Antigo Testamento. Um exemplo disso é encontrado em 2 Tessalonicenses 2:15[2]. No entanto, em um sentido mais restrito, tradição se refere a coisas que não foram escritas pelos Profetas ou Apóstolos, mas sim explicadas por eles oralmente (viva voce). Os papistas [católicos romanos] valorizam e afirmam este último tipo de tradição; nós, por outro lado, distinguimos aquelas coisas que não são explicadas adequada, apropriada ou verdadeiramente (obtenduntur[3]) por eles.
3 – Embora as tradições costumem ser classificadas em Divinas, Apostólicas e Eclesiásticas, em função de seus diferentes autores, como tal distinção não é relevante para o presente caso, acreditamos que outra forma de classificá-las, baseada em seu conteúdo, será suficiente. Existem, portanto, tradições de fato, isto é, de natureza histórica; e outras de lei, que dizem respeito à fé, moral ou disciplina.
4 – Chamamos históricas aquelas tradições pelas quais são narradas histórias de feitos por Jesus Cristo, pelos Profetas, pelos Apóstolos ou pelos próprios Evangelistas, dos quais, no entanto, as Escrituras Canônicas não fazem menção. Que outros eventos ocorreram além do que está contido nas Escrituras é ensinado pela própria razão e também confirmado pelo Apóstolo João em seu próprio Evangelho (João 20:30, 31; 21:25). “Se os relatos dessas tradições (pois algumas são encontradas entre os Pais ortodoxos) concordam com o cânone, nós as aceitamos. Se discordam, as rejeitamos”. Se não concordam nem discordam, as deixamos indeterminadas (in medio relinquimus), não prescrevendo fé para ninguém.
5 – No entanto, a razão é múltipla para essas tradições estabelecidas na lei. Algumas dizem respeito a questões (rationem) de fé propriamente ditas e essenciais (per se), outras tocam princípios morais (rationem) e à conduta de vida, e ainda há aquelas questões (rationem) relacionadas a disciplina e cerimônias. Examinemos agora cada uma delas separadamente.
6 – Os papistas afirmam que existem certas tradições relativas a questões de fé e que são necessárias; negamos isso. Pois “a Sagrada Escritura é um instrumento divino que contém perfeitamente a regra de fé pela perfeição e maneira divinas, que é única, sempre a mesma e a única imutável, à qual nada pode ser acrescentado, retirado ou alterado, e como diz Tertuliano: — ‘é irreformável’”. Qual é, então, o propósito das tradições? Além disso, a autoridade da fé provém unicamente da autoridade de Deus, e está selada nas Sagradas Escrituras de tal forma que quem acrescenta, diminui ou altera alguma coisa nela é declarado amaldiçoado (deletum[4]). Assim, está longe de ser verdade que as tradições sobre a fé sejam necessárias para nós; pelo contrário, “é totalmente necessário que não tenhamos tradições sobre a fé na Igreja de Deus”.
7 – No entanto, uma vez que, aqueles que proclamam estas tradições são incapazes de apresentar qualquer autoridade ou exemplo para a autenticidade delas, os papistas recorrem geralmente a tradições que pertencem à moral, à disciplina ou à história. Pois o que afirmam, por exemplo (verbi gratia), a respeito da virgindade perpétua da Virgem, a Mãe de Deus (θεοτόκου) – e de forma alguma o negamos – é uma tradição histórica; quase todas as outras coisas dizem respeito à tradição disciplinar. No entanto, é inconsistente e inconclusivo (ἀσυλλόγιστον) argumentar a partir de uma espécie de tradição para provar outra. Abordamos as tradições históricas na quarta tese; vamos agora considerar as demais.
8 – Em relação à autoridade das tradições que se referem aos costumes, é preciso buscar a origem de sua autoridade ou na natureza[5] ou nas Escrituras, e isso ou principalmente de modo absoluto e por si, ou analogamente[6], seja clara ou obscuramente[7]. Se algo for estabelecido pela Igreja na totalidade, mas estiver fora, além ou contra essa autoridade, ou por qualquer outra [autoridade] que não as mencionadas, os fiéis [piedosos] não devem dar atenção a tal coisa, mesmo que venha da própria Igreja.
9 – Considerando que a autoridade dos nossos costumes naturais provém da própria Natureza, e a autoridade dos costumes sobrenaturais relacionados à vida eterna provém da Escritura Sagrada, a simples comparação da Natureza com a Sagrada Escritura demonstra claramente que, assim como nada referente aos costumes naturais está fora, além ou contra a Natureza, ensinado somente por ela, do mesmo modo, para os costumes sobrenaturais relacionados à vida futura, nada deve ser ensinado ou pode ser ensinado fora, além ou contra a Escritura Sagrada. A menos, talvez, que alguém considere a Natureza perfeita em sua essência, enquanto a Escritura Sagrada seria menos perfeita; e, portanto, eles afirmem que Deus revelou mais na Natureza do que na Escritura Sagrada.
10 – As distinções das tradições que se referem à disciplina são, no entanto, peculiares. Os papistas costumam apresentá-las nesta questão:
[1] – Algumas são tradições perpétuas, como (por exemplo) a realização de assembleias sagradas etc., e outras são temporárias, como realizá-las em público ou em privado, de manhã ou à tarde etc.
[2] – Algumas são tradições universais e outras, particulares.
[3] – Algumas tradições são necessárias e outras são opcionais. Pois tudo o que diz respeito à fé e à moral é propriamente necessário, quer primária e diretamente, quer secundariamente, os quais estão imutavelmente ordenados ao seu princípio.
11 – A disciplina, por ser apenas uma justa auxiliadora e administradora da fé e dos costumes, exige de nós certa distinção. Pois quaisquer ensinamentos disciplinares que, por sua natureza, espécie e propósito, tenham conexão e conjunção perpétuas, universais e necessárias com a regra da fé e dos costumes, não são tradições. Estes estão contidos abrangentemente nas Sagradas Escrituras, seja de forma expressa ou de modo análogo. Contudo, o que for estabelecido em circunstâncias específicas, essas tradições podem existir ou vir a existir na Igreja. Ainda assim, reconhecemos serem temporárias, particulares e opcionais (liberas).
12 – Para essas tradições que lidam com circunstâncias específicas, o Apóstolo Paulo estabelece a regra em 1 Coríntios 14:40: — “[…] tudo decentemente e com ordem” —, referindo-se ao decoro e ordem honrosos, que em Igrejas individuais são organizados e ordenados para sua conveniência no presente assunto, como diz o mesmo Apóstolo em 1 Coríntios 11. Sêneca, na Epístola 22, declara sabiamente: — “Há certas coisas que só podem ser apontadas por alguém que está presente. O médico não pode receitar por carta o tempo adequado para comer ou tomar banho; ele deve sentir o pulso. Há um velho ditado sobre gladiadores: — ‘ouça o conselho do gladiador na arena’”. No entanto, é preciso manter uma forma e duração definidas para essas tradições. Forma, para as ações externas serem limitadas, para o uso justo delas com verdade e simplicidade, livres de superstição e tirania, ou seja, com a livre consciência da pessoa interior permanecendo ilesa. Quanto à duração, que elas persistam na Igreja apenas até que alcancem seu fim verdadeiro, santo, justo e legítimo. Mas quando a situação muda, elas devem ser abolidas, para não prejudicarem o que é verdadeiro, santo, justo e legítimo, como lemos sobre a serpente de bronze destruída pelo rei Ezequias (2 Reis 18:4[8]).
Paz e graça.
Pr. Dr. Plínio Sousa[9].
[1] – (1545 – 1602), “On Traditions” (De Traditionibvs — Pars I) — https://www.reformedorthodoxy.org/post/6-de-traditionibvs-pars-i — Acessado em 2024.
[2] – “Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa” (ACF).
[3] – “São adequadamente explicadas”, “são defendidas de forma válida”, “são sustentadas com argumentos sólidos”.
[4] – “Ausência de algo escrito”, “não escrito”.
[5] – Refere-se à Lei Natural, a qual é considerada universal e imutável.
[6] – A autoridade deriva da fonte por comparação ou semelhança com princípios já estabelecidos.
[7] – A interpretação da fonte pode ser clara e direta, ou obscura e necessitar de maior análise.
[8] – “Ele tirou os altos, quebrou as estátuas, deitou abaixo os bosques, e fez em pedaços a serpente de metal que Moisés fizera; porquanto até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso, e lhe chamaram Neustã” (ACF).
[9] – Tradutor: — notas e significações.