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Portanto, de fato entendo como conhecimento de Deus aquele em virtude do qual não apenas concebemos que Deus existe, mas ainda apreendemos o que nos importa dEle conhecer, o que lhe é relevante à glória, enfim, o que é proveitoso saber a seu respeito. Ora, falando com propriedade, nem diremos que Deus é conhecido onde nenhuma religiosidade há, nem piedade. E aqui ainda não abordo essa modalidade de conhecimento pela qual os homens, em si perdidos e malditos, apreendem a Deus como Redentor, em Cristo, o Mediador. “Ao contrário, estou falando apenas desse conhecimento primário e singelo, a que nos conduziria a própria ordem da natureza, se Adão se conservasse íntegro”. Ora, se bem que nesta ruinosa situação do gênero humano já ninguém sentirá a Deus, seja como Pai, seja como autor da salvação, seja como de qualquer maneira propício, até que Cristo se interponha como agente mediador para apaziguá-lo em relação a nós, todavia uma coisa é sentirmos que Deus, como nosso Criador, nos sustenta com seu poder, nos governa em sua providência, nos provê em sua bondade e nos cumula de toda sorte de bênçãos; outra, porém, é abraçarmos a graça da reconciliação que nos é proposta em Cristo. Portanto, uma vez que o Senhor se mostra, em primeiro lugar, tanto na estrutura do mundo, quanto no ensino geral da Escritura, simplesmente como Criador, e então na face de Cristo (cf. 2 Coríntios 4:6) como Redentor, daí emerge dEle “duplo conhecimento”, de que se nos impõe tratar agora do primeiro. O outro se seguirá, na devida ordem (confiança e reverência). Mas, embora nossa mente não possa apreender a Deus sem que lhe renda alguma expressão cultual, não bastará, contudo, simplesmente sustentar que Ele é um e único, a quem importa ser de todos cultuado e adorado, se não estamos também persuadidos de que “Ele é a fonte de todo bem”, para que nada busquemos de outra parte senão nEle. Eu o recebo nestes termos: — “não só que uma vez Ele criou este mundo, e de tal forma o sustém por seu imenso poder; o regula por sua sabedoria; o preserva por sua bondade; rege com sua justiça e equidade especialmente ao gênero humano; suporta-o em sua misericórdia; guarda-o em sua proteção; mas, ainda que em parte alguma se achará uma gota ou de sabedoria e de luz, ou de justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dEle não emane e de que não seja Ele próprio a causa; de sorte que aprendamos a realmente dEle esperar e nEle buscar todas essas coisas; e, após recebidas, a atribuir-lhes com ação de graças”. Ora, este senso dos poderes de Deus nos é mestre idôneo da piedade, da qual nasce a religião. Chamo “piedade à reverência associada com o amor de Deus que nos faculta o conhecimento de seus benefícios”. Pois, até que os homens sintam que tudo devem a Deus, que são assistidos por seu paternal cuidado, que é Ele o autor de todas as coisas boas, daí nada se deve buscar fora dEle, jamais se lhe sujeitarão em obediência voluntária. Mais ainda: — “a não ser que ponham nEle sua plena felicidade, verdadeiramente e de coração nunca se lhe renderão por inteiro”.

Confiança e reverência são fatores do conhecimento de Deus.

Portanto, simplesmente se recreiam em frívolas especulações quantos se propõem insistir nesta pergunta: — “Que é Deus?”. Quando devemos antes interessar saber qual é sua natureza e o que lhe convém à natureza. Pois, de que vale, segundo Epicuro, confessar um Deus que, pondo de parte o cuidado do mundo, só se apraz no ócio? Afinal, que ajuda traz conhecer a um Deus com quem nada temos a ver? Antes, pelo contrário, seu conhecimento nos deve valer, em primeiro lugar, que nos induza ao temor e à reverencia; segundo, “tendo-o por guia e mestre, aprendamos a buscar nEle todo o bem e, em recebendo-o, a Ele tudo creditar”. Ora, como pode subir-te à mente o pensamento de Deus, sem que, ao mesmo tempo, logo reflitas: — uma vez que és feitura dEle, pelo próprio direito de criação foste sujeitado e vinculado a seu domínio, que lhe deves a vida, que convém atribuir-lhe tudo quanto fazes? Se assim é, então segue-se necessariamente, uma vez que sua vontade nos deve ser a lei do viver, “que inexoravelmente a vida te é corrompida, se não a pões ao serviço dEle”. Por outro lado, nem o podes visualizar com clareza, sem que reconheças ser Ele a fonte e origem de todas as coisas boas, donde deveria nascer não só o desejo de se apegar a Ele, mas ainda de depositar nEle sua confiança, “se o homem não desviasse sua mente da reta investigação para sua depravação”. Ora, para começar, a mente piedosa não sonha para si um Deus qualquer; ao contrário, contempla somente o Deus único e verdadeiro; nem lhe atribui coisa alguma que lhe ocorra à imaginação, mas se contenta com tê-lo tal qual Ele mesmo se manifesta, e com a máxima diligência sempre se acautela, “para que não venha, mercê de ousada temeridade, a vaguear sem rumo, indo além dos limites de sua vontade”. Conhecido Deus desta forma, visto saber que “Ele a tudo governa”, confia ser Ele seu guia e protetor, e assim se entrega a toda sua guarda; porque entende ser Ele o autor de todo bem, se algo o oprime, se algo lhe falta, de pronto a sua proteção se recolhe, dEle esperando assistência; visto que está persuadido de que Ele é bom e misericordioso, nEle repousa com segura confiança, nem duvida que a todos os seus males em sua clemência haverá de ter sempre preparado o remédio; visto que o reconhece por Senhor e Pai, também o julga digno de toda sua atenção, em todas as coisas, para sua soberania, reverenciar sua majestade, procurar promover sua glória, seus preceitos obedecer; porque percebe ser Ele justo juiz e armado de sua severidade para punir os crimes, tem sempre diante dos olhos seu tribunal, e no temor que por Ele nutre, se retrai e coíbe de provocar-lhe a ira. Todavia, não significa que a tal ponto se deixa apavorar pelo senso de seu juízo que, embora lhe seja patente o meio de evadir-se, ainda que o queira. Antes, não menos o abraça como o juiz dos maus quanto é Ele o benfeitor dos piedosos; uma vez que compreende que tanto “pertence à glória de Deus dar aos ímpios e perversos o castigo que merecem, como também aos justos o dom da vida eterna”. Além disso, refreia-se de pecar não só pelo temor do castigo, mas porque ama e reverencia a Deus como Pai; honra-o e cultua-o como Senhor; “e mesmo que não existisse nenhum inferno, ainda assim treme só à idéia da ofensa”. Eis no que consiste a religião pura e real: — “fé aliada a sério temor de Deus, de modo que o temor não só em si contém reverência espontânea, mas ainda traz consigo a legítima adoração, a qual está prescrita na Lei”. E isto se deve observar com mais diligência: — “enquanto todos veneram a Deus de maneira vaga e geral, pouquíssimos o reverenciam de verdade; enquanto, por toda parte, grande é a ostentação em cerimônias, rara, porém, é a sinceridade de coração”.

Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.

[1] – CALVINO, João, Tratado da Religião Cristã, Volume 1, Capítulo II, p. 41 – 42.

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