2 – O Luteranismo.
As Igrejas luteranas também se apartaram do Sola Scriptura na compreensão e regulamentação do culto público. Lê-se na Confissão de Augsburgo (1530): — “E para [alcançar] a verdadeira unidade da Igreja é bastante que se concorde quanto à doutrina do Evangelho e a administração dos sacramentos. Nem é necessário que as tradições humanas, rituais, ou cerimônias instituídas pelos homens devam ser iguais em toda parte, como disse São Paulo: — uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos” (Artigo 7, Da Igreja).
Quanto aos rituais eclesiásticos (criados pelos homens), eles ensinam que aqueles rituais devem ser obedecidos e observados sem pecado, e que são proveitosos para a tranquilidade e boa ordem na Igreja; assim como são determinados dias santos, festivais e coisas semelhantes. Mas quanto a isso, deve-se admoestar aos homens que não devem ter as consciências pesadas como se tais serviços fossem necessários à salvação. Ensina-se, ademais, que todas as ordenanças e tradições feitas pelo homem com o propósito de por elas reconciliar-se a Deus e merecer graça são contrárias ao Evangelho e à doutrina da fé em Cristo. Portanto votos e tradições quanto a comidas e dias e coisas semelhantemente instituídas para merecer graça e reparação pelo pecado são inúteis e contrárias ao Evangelho (Artigo 15, Dos Rituais Eclesiásticos).
Na Fórmula de Concórdia (1576 [1584]), Artigo 10, Das Cerimônias Eclesiásticas, lê-se: — (As quais são comumente chamadas de adiafóricas, ou coisas indiferentes). Surgiu também entre os teólogos da Confissão de Augsburgo uma controvérsia quanto às cerimônias eclesiásticas ou rituais que não são ordenados nem proibidos na Palavra de Deus, mas que foram introduzidos na Igreja meramente por causa da ordem e da decência (sã doutrina e confissão referente a este artigo).
I – Para melhor desembaraço dessa controvérsia nós cremos, ensinamos e confessamos, com unânime consentimento, que cerimônias ou rituais eclesiásticos (que não são ordenados nem proibidos na Palavra de Deus, mas foram instituídos apenas por motivos de ordem e decência) não são em si mesmos, culto divino, nem sequer fazem parte dele. Pois está escrito, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens (Mateus 15:9).
II – Nós cremos, ensinamos e confessamos que é permito à Igreja de Deus em qualquer parte da terra, a qualquer tempo, consoante a ocasião, modificar tais cerimônias, de modo que sejam julgadas mais úteis para a Igreja de Deus e mais apropriadas à sua edificação […].
V – Nós cremos, ensinamos e confessamos que uma Igreja não deve condenar outra por ela observar em maior ou menor grau as cerimônias externas, as quais o Senhor não instituiu, desde que haja entre elas concordância quanto à doutrina e a todos os artigos concernentes, e no verdadeiro uso dos sacramentos.
Nós repudiamos e condenamos como antagônicos à Palavra de Deus os seguintes falsos dogmas: — [1] – Que as tradições e preceitos humanos de coisas eclesiásticas devem, por si mesmos, ser considerados como culto divino ou pelo menos como parte do culto divino. [2] – Quando cerimônias e preceitos desse tipo são, por algum tipo de coerção, impostos à Igreja como necessários, sendo isso contrário à liberdade cristã que a Igreja de Cristo tem em assuntos externos dessa natureza.
A posição luterana confessional sobre o culto é basicamente a de que os homens podem fazer acréscimos ao culto a Deus conforme lhes for conveniente, uma vez que os acréscimos humanos não são considerados como parte do culto. É permitido à Igreja acrescentar rituais e cerimônias uma vez que não sejam condenados pela palavra e sejam considerados proveitosos. Entretanto, as tradições humanas que são acrescentadas não são em si mesmas, culto divino, nem sequer fazem parte dele. De acordo com os teólogos luteranos, os rituais e cerimônias criados pelos homens são meramente matérias externas e não verdadeiramente culto; podem ser acrescentados e retirados à vontade; e não podem ser impostos como compulsórios ao laicato.
O entendimento luterano sobre o culto foi desenvolvido cedo na Reforma e era dirigido primariamente contra Roma. Para Lutero e Melanchthon o maior problema com os ritos e cerimônias papais é que eram compulsórios e considerados necessários à salvação. Lutero escreveu: — Sobre esta mesma base frágil os romanistas atribuíram ao sacramento da ordenação um certo caráter fictício, do qual se diz estar indelevelmente impresso em um ordenando. Eu perguntaria donde surgiram tais idéias, com a autoridade de quem e com que propósito foram estabelecidas? Não é que não queiramos que os romanistas sejam livres para inventar, dizer ou asseverar o que bem quiserem. Mas nós também insistimos na nossa própria liberdade, para que eles não se arroguem o direito de criar artigos de fé da sua própria cabeça, como até agora têm se atrevido a fazer. É suficiente que, por causa da concórdia, devemos nos acomodar às suas cerimônias e idiossincrasias, mas recusamo-nos a ser forçados a aceitá-las como necessárias à salvação, porque que elas não o são. Retirem eles o item de obrigatoriedade de suas demandas arbitrárias, que concederemos livre obediência aos seus desejos para que possamos viver em paz uns para com os outros. Porque é indigno, iníquo, e servil para um homem cristão, em sua liberdade, ser submetido a qualquer regra exceto à celestial e divina.
Em sua Apologia, Melanchthon escreve: ― Pois a Escritura chama as tradições de doutrinas de demônios, ao passo que ensina que os ritos religiosos são úteis para merecer remissão de pecados e graça. Se os adversários defendem esses atos humanos como merecedores de justificação, de graça e de remissão de pecados, eles estabelecem definitiva e completamente o reino do Anticristo. Daniel indica que novos cultos humanos serão a própria forma e preceito do Anticristo.
As principais diferenças entre o culto reformado e o luterano resultam das diferentes perspectivas teológicas de Lutero e Calvino. Pode-se dizer que Lutero, quanto à prática da Igreja, era bem conservador. Para ele, a justificação pela fé era a doutrina maior sob a qual praticamente todos os outros ensinamentos tinham de ser considerados para serem entendidos. Era a doutrina principal pela qual a Igreja se mantinha de pé ou caía. Por isso, quando Lutero aplicou-se à reforma do estilo de culto medieval, ao qual estava acostumado, ele usou um bisturi e não um machado. Embora Lutero fosse um ardente defensor do Sola Scriptura, ele nunca fez a conexão entre a Escritura somente e a necessidade da sanção divina para as ordenanças do culto, como fez Calvino. Quando Lutero olhava a prática do culto, a sua principal preocupação era: — Será que esta prática é motivada por uma crença na justificação pelas obras? Será que este ritual ou prática deprecia de algum modo o perfeito, todo–suficiente sacrifício de Jesus Cristo? Com esse critério, Lutero eliminou muitos abusos (exempli grata – por exemplo [e.g.], a missa católico–romana, as peregrinações, a mediação dos santos, a hierarquia clerical, etc.). Lutero ensinava também que qualquer prática de culto que contradissesse o claro ensinamento da Escritura deveria ser evitada. Por isso, o culto da Igreja deveria ser inteligível para o povo. Deveria ser conduzido em sua própria língua. A Comunhão deveria ser servida em ambos os elementos — o pão e o vinho. A pregação deveria ser enfatizada para que o rebanho recebesse instrução e edificação em vez de inútil algaravia[2] em latim. Um outro importante aspecto em Lutero era a liberdade cristã. As tradições humanas no culto eram adiafóricas (indiferentes) e não deveriam ser impostas às pessoas. Tal coerção cheirava a catolicismo e mercadejar de méritos.
Lutero tinha uma visão favorável das tradições da Igreja. As tradições humanas na Igreja deveriam ser respeitadas e consideradas valiosas desde que não contradissessem a Escritura. Esta visão das tradições é notada na doutrina das ordens de Lutero. Escreve Davies: — A implicação desta doutrina era que Deus havia ordenado o mundo de tal modo que o homem não deveria viver como um mero indivíduo isolado da sociedade, mas como um ser que compartilha certos relacionamentos comunais. Tais comunidades ordenadas por Deus são a Igreja e o Estado. Desde que elas dependem do divino assentimento para a sua continuidade, os homens deveriam respeitá-las. Devem, portanto, ser obedecidas, exceto quando contradizem definitivamente a vontade revelada de Deus. Essa doutrina concede à tradição um valor excessivo e como tal deve ser considerada como a base religiosa do conservadorismo de Lutero. Ajuda também a explicar porque os bispos têm um papel tão importante na decisão de quais reformas litúrgicas são desejáveis. Teoricamente Lutero deixa a escolha de aceitar ou rejeitar as suas reformas litúrgicas aos cristãos das Igrejas locais, mas na prática a decisão foi deixada a critério do bispo.
A confissão luterana reflete fielmente o ensino de Lutero quanto às cerimônias humanas. As tradições da Igreja (isto é, rituais humanamente imaginados e cerimônias não ordenadas na Escritura) são permitidas se: — [1] – Elas não tiverem tendências católicas (isto é, nenhum mérito humano está ligado à cerimônia), [2] – As cerimônias não violarem o ensinamento das escrituras, [3] – Elas não forem superestimadas a ponto de os crentes valorizarem menos os reais mandamentos bíblicos (por exemplo, a Ceia do Senhor), [4] – Elas não forem compulsórias (isto é, não podem ser impostas sob pressão). Noutras palavras, não devem ser considerados atos necessários de culto — Um ato necessário de culto é aquele ordenado pela Escritura, como, por exemplo, os sacramentos.
Os luteranos ensinam que é permitido à Igreja acrescentar rituais e cerimônias apenas dentro do âmbito da adiaforia (palavra grega que significa “coisas indiferentes”). Allbeck escreve: — A Fórmula de Concórdia delimita primeiro as fronteiras da genuína adiaforia. A genuína adiaforia não é contrária à Palavra de Deus, não cria facções, não romaniza, não [cria] tolos e inúteis espetáculos, não constitui essencialmente o culto a Deus. Quanto à sua situação diz-se que a adiaforia pode ser modificada pela Igreja no interesse da boa ordem, disciplina e edificação. Mas há sempre a necessidade de uma clara confissão doutrinal em palavras e ações. A adiaforia é um elemento de liberdade. Adiaforia compulsória é uma contradição de termos. Quando deixa de ser livre deve ser resistida. O entendimento luterano de Sola Scriptura não permite à Igreja acrescentar as suas próprias doutrinas aos ensinamentos da Escritura, nem lhe permite acrescentar culto essencial ou ordenado (isto é, os sacramentos). Ele, no entanto, ao declarar simplesmente que os acréscimos humanos estão no âmbito da adiaforia, dá à Igreja um papel muito amplo na determinação de ritos e cerimônias. Na teoria, as declarações luteranas referentes ao culto são superiores aos ensinamentos episcopais. Pelo menos os luteranos não consideram seus acréscimos humanos como parte real do culto. Eles também argumentam que os rituais e cerimônias humanas não são compulsórios como as ordenanças de culto prescritas pela Escritura. Na prática, entretanto, as Igrejas luteranas não são melhores que as suas similares episcopais. Ambas negam a suficiência das Escrituras no âmbito do culto. Ambas são culpadas em permitir que a corrupção humana substitua o puro culto evangélico. Ambas negam que o culto a Deus na era da Nova Aliança é fixado ou limitado pelo cânon da Escritura. Em consequência disso, ambas entregam os parâmetros do culto aceitável a uma alteração contínua. As fronteiras do culto estão em constante mudança porque são determinadas, não pela Escritura somente, mas também pela tradição humana, e há um número infinito de opções de culto à disposição do homem que não violam o princípio luterano de permitir qualquer coisa que não seja expressamente proibida.
Há uma série de razões pelas quais o entendimento luterano do culto deve ser rejeitado com não bíblico e irracional. Primeiro, não é bíblico a idéia de que ritos e cerimônias externas são adiafóricas. Todo ato na esfera moral e religiosa é sempre bom ou mal. As únicas atividades que podem ser consideradas adiafóricas são as matérias que são realmente circunstanciais ou incidentais à cerimônia, tais como a disposição das cadeiras, acender as luzes, etc. Atividades circunstanciais não necessitam de comprovação da Escritura, entretanto precisam ser conduzidas conforme as regras gerais do mundo. Williamson escreveu: — É preciso cuidado ao distinguir entre as circunstâncias do culto e o próprio culto. Por exemplo, a Escritura não determina a que hora do dia o culto público congregacional deve ocorrer. O Senhor também não determinou o formato, estilo ou tamanho do local de culto. Conforme a natureza do caso, tais circunstâncias poderão variar de país a país, entre as estações do ano, ou de um lugar para outro. Há, entretanto, uma regra geral que determina que as congregações se reúnam em algum lugar no dia do Senhor. A regra geral controla a situação particular, conforme as circunstâncias. Mas, quando a congregação se reúne no local acertado o culto, então, deve ser unicamente aquele que Deus ordenou.
O estilo arquitetônico da Igreja, a iluminação, a climatização, a organização da bancada e a duração do serviço são circunstanciais no culto a Deus. Entretanto, aspergir água–benta, fazer o sinal da cruz, proibir comer carne às sextas–feiras, usar sal e creme no batismo infantil, Confirmação, celebração de Natal e de Páscoa, vestimentas sacerdotais, cerimoniais especiais e ajoelhar-se para receber a Ceia do Senhor não são circunstanciais ao culto, mas acréscimos a ele.
As inovações no culto criadas pelos homens são terminantemente proibidas pela Escritura. A Bíblia ensina que os homens nada devem acrescentar ou subtrair dos preceitos morais de Deus (cf. Deuteronômio 4:2; Josué 1:7, 8; Provérbios 30:5, 6) nem nada acrescentar ou subtrair ao culto que Deus instituiu em sua Palavra (cf. Deuteronômio 13:32; Levítico 10:1, 2; 2 Samuel 6:3 – 7; Jeremias 7:31; 19:5). A idéia luterana de que os rituais ou cerimônias criadas pelo homem não são culto é antibíblica e totalmente arbitrária. Sabemos que Deus considera os rituais ou cerimônias humanas adicionadas ao culto como não autorizados, inaceitáveis e pecaminosos. Jeová matou Nadabe e Abiú por realizarem uma cerimônia idealizada humanamente (a queima de fogo estranho diante do Senhor, Levítico 10:1, 2). Embora os teólogos luteranos não considerem os atos de culto humanamente criados como culto real, Deus se refere a todas essas invenções humanas como culto de si mesmo (Colossenses 2:20 – 23). Jesus repreendeu os fariseus pela invenção humana do ritual religioso de lavar as mãos (Mateus 15:1 – 3). Os judeus foram repreendidos pelo nosso Senhor não porque haja alguma coisa intrinsecamente imoral no lavar as mãos, mas porque a Igreja não tem autoridade para acrescentar as suas próprias cerimônias religiosas àquilo que Deus autorizou em sua Palavra. Alguns argumentam que Jesus estava condenando apenas às más e não edificantes tradições humanas que estavam sendo adicionadas ao que Deus ordenara. O problema dessa argumentação é que o lavar religioso das mãos, numa perspectiva estritamente ética, não fere ninguém. Jesus pegou a tradição religiosa humana mais inocente e inócua possível para deixar claro como a luz o ponto de que nenhum acréscimo humano é aceitável a Deus, não importa quão pequeno ou inocente ele seja.
Em segundo lugar, a afirmativa luterana de que os rituais e as cerimônias humanas não são obrigatórias, nem compulsórias não reflete a prática real nem dos luteranos nem de ninguém. Por quê? Porque quando cerimônias humanas são introduzidas na adoração pública a Deus elas são sempre praticadas debaixo de algum tipo de coerção humana. A partir do momento em que elas são introduzidas no culto da Igreja, as pessoas são forçadas ou a saírem daquela Igreja, para evitar os acréscimos humanos, ou a cometerem pecado, ao participarem de cerimônias não autorizadas. Sempre que alguma Igreja acrescenta cerimônias humanamente elaboradas ao culto a Deus há sempre pressão eclesiástica e social para submeter-se a elas. Espera-se que os membros, e a isso são motivados, sigam o calendário da Igreja, vão aos cultos de Páscoa e de Natal, cantem hinos não inspirados, ouçam a grupos musicais, assistam ao coral infantil, participem dos apelos para irem ao altar, etc. Até mesmo em Igrejas reformadas as pessoas sofrem pressão ou coerção para se conformarem às variadas corrupções que se foram acumulando ao longo dos anos. As pessoas têm sido disciplinadas por se recusarem a participar de invenções humanas tolas e romanistas (por exemplo, hinos não inspirados, dias santos, culto infantil, etc.).
O conceito luterano de tradições humanas não compulsórias pode, na teoria, soar bem, mas na prática ele corrompe a Igreja e destrói a liberdade cristã. A Bíblia ensina que somente Deus falando em sua Palavra infalível tem absoluta, inquestionável autoridade sobre a consciência dos homens. Assim assevera a Confissão de Fé de Westminster: ― “Só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. Assim, crer em tais doutrinas ou obedecer a tais mandamentos, por motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência; e requerer para eles fé implícita e obediência cega e absoluta, é destruir a liberdade de consciência e a própria razão” (XX.II). Os crentes em Cristo são livres não apenas de doutrinas e mandamentos que são contrários à Palavra de Deus, tais como confissão a um sacerdote, missa, celebração de dias santos além do Dia do Senhor, etc., são também livres de doutrinas e mandamentos que sejam acréscimos à Bíblia, isto é, que não contradizem à Escritura explicitamente, mas não são ensinados nela; eles derivam da autoridade humana. A qualquer doutrina ou mandamento contrário ou além da sua vontade, em assuntos religiosos, o cristão não apenas pode, mas deve desobedecer. Liberdade de consciência significa a liberdade do indivíduo obedecer a Deus e não ao homem.
Embora os luteranos insistam (como já foi observado) que os seus acréscimos humanos não são compulsórios (com o objetivo de se evitar a aparência de catolicismo), eles o são de fato. Até mesmo o grande Martinho Lutero foi inconsistente. Davies escreve: — De modo semelhante, em assuntos litúrgicos, pode-se argumentar legitimamente que a sua doutrina da Palavra de Deus não foi desenvolvida logicamente. Como atenuante, deve-se lembrar, entretanto, que ele foi o primeiro dos reformadores e que no tempo de Calvino a situação era mais estável e os homens tinham mais tempo para refletir sobre tais assuntos. Entretanto, não se pode negar que nos últimos anos de Lutero, o reformador demonstrou um crescente conservadorismo. Ele desejava uma maior uniformidade tanto no uso das vestimentas eclesiásticas quanto na forma litúrgica. Aquilo que anteriormente havia sido opcional tornou-se obrigatório.
Será que se espera que acreditemos que um ministro luterano e sua congregação serão deixados à vontade pelas autoridades da Igreja se eles decidirem descartar o calendário eclesiástico, os dias santos extra–bíblicos, hinos, órgãos, cruzes e todas as outras inovações humanas que carecem da sanção divina? É triste, mas espera-se que os congregados luteranos, assim como seus similares anglicanos, se submetam às cerimônias e aos mandamentos dos homens com fé implícita e obediência cega. Lembre-se, aquilo que não é feito em fé, nem é acompanhado do convencimento pessoal da sua obrigação ou legitimidade à vista de Deus, é declarado como pecado (Romanos 14:23). Hodge escreve: ― “É um grande pecado, que envolve ao mesmo tempo sacrilégio e traição à raça humana, qualquer homem ou associação humana arrogar-se a prerrogativa de Deus e tentar subjugar a consciência de seus semelhantes com qualquer obrigação certamente não imposta por Deus e revelada em sua Palavra. Além disso, quando as pessoas participam das ordenanças de culto que brotaram da mente do homem que se baseiam na autoridade eclesiástica e não na Escritura — não estão honrando a Deus (que jamais ordenou tais ritos ou cerimônias), mas ao homem. Estão em princípio curvando-se à autoridade autônoma de homens pecadores. Adorar a Deus sem que haja uma determinação divina é um reconhecimento implícito do papado e de uma liderança eclesiástica ― “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos” (1 João 5:21).
Em terceiro lugar, as posições luteranas sofrem de contradições internas irreconciliáveis. De acordo com as confissões luteranas é permitido aos homens acrescentarem as suas próprias tradições, rituais ou cerimônias ao culto a Deus somente se elas forem edificantes e consideradas não compulsórias. Tais qualidades levantam importante questão. Se os homens têm a capacidade de imaginar uma tradição, ritual ou cerimônia que verdadeiramente santifica os crentes, não deveria tal cerimônia se realmente edifica o povo de Deus ser obrigatória? Os artigos anglicanos que determinam que a Igreja pode produzir e impor ao rebanho, se necessário, com disciplina eclesiástica, ritos ou cerimônias que ela considera como edificantes são mais lógicos. Se uma tradição humana, ritual ou cerimônia santifica, então deveria ser obrigatória. É importante observar, entretanto, que o apóstolo Paulo ensina que mandamentos e ordenanças humanos não edificam nem santificam a Igreja. Ele escreve: ― Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitas a ordenanças: — não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquilo outro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas cousas, com o uso, destroem-se. Tais cousas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade (Colossenses 2:20 – 23). Rituais e cerimônias humanas são mandamentos de homens. Parecem ser sábios e edificantes, a verdade, entretanto, é que elas nada santificam. O Espírito Santo não usa tradições humanas, rituais ou cerimônias para edificar a Igreja. Ele usa a Palavra de Deus – “Santifica-os na verdade; a Tua Palavra é a verdade” (João 17:17). Se quisermos, portanto, receber edificação, devemos seguir apenas as leis, estatutos e ordenanças religiosas de Deus. Legalismo papal, da liderança eclesiástica e/ou fundamentalista não edifica.
Em quarto lugar, a alegação luterana de que rituais ou cerimônias criadas pelo homem não são culto é contra–senso fantasioso. Quando as autoridades eclesiásticas inventam uma cerimônia religiosa e a introduzem no ato do culto público ao lado das ordenanças de culto autorizadas na Escritura, eles estão ensinando implicitamente que as cerimônias criadas pelo homem são do mesmo tipo e carregam autoridade igual às ordenanças divinamente ordenadas. Quando os homens misturam cerimônias humanas com ordenanças divinas no culto, será que eles esperam que os adoradores façam distinção entre as duas (humana e divina) no desenrolar do ato de culto? Além disso, se as cerimônias religiosas criadas pelo homem não são ato de culto, então, o que são elas? Qual o propósito delas? Por que são elas conduzidas durante o culto? Por que são arroladas no boletim da Igreja como parte do culto público a Deus? Frank Smith escreve: — Observe cuidadosamente que o ato de culto é uma imposição, desde que se exige que nos congreguemos com o povo de Deus para participarmos do culto público. Portanto, qual é a posição legalista (e que se opõe à liberdade cristã) — a que pensa que não é preciso aprovação bíblica para exigir que se faça isso ou aquilo no culto, ou a que apela estritamente à Escritura e nada deseja impor ao precioso rebanho de Deus que não se encontre em sua Palavra? Poderíamos observar, incidentalmente, que a fé reformada é ao mesmo tempo a mais rígida e estreita, e, também, a mais larga e mais universal, devido à sua disposição de nada impor às pessoas que não seja bíblico. A idéia luterana de que os acréscimos humanos ao ato de culto realmente não são culto mostra quão enganoso é o coração do homem. Os homens são tão apaixonados por suas tradições humanas não autorizadas que eles torcem o claro sentido das palavras e recorrem a argumentos ilógicos e doentios e a malabarismos exegéticos para justificarem as suas práticas pecaminosas. A concepção luterana é muito parecida com a absurda afirmação católico–romana de que o culto aos santos e à Virgem Maria não é realmente culto. Alegam que é um culto especial (“latria”) quando o romanista curvar-se diante de Deus. Mas quando ele se curva para adorar os santos e a bendita virgem é “doulia” (ou, para Maria, “hyperdoulia”). Precisamos reconhecer que todas estas distinções tipicamente farisaicas nada mais são que desculpas espertas para desviar-se do culto que Deus tem determinado. Contra toda usurpação tirânica e excesso da Igreja, Cristo diz: ― “E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” (Mateus 15:9; cf. Isaías 29:13).
Paz e graça. Pr. Me. Plínio Sousa.
[1] – Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto, 1ª Edição — Março de 2001, Traduzido do original em inglês: Sola Scriptura and the Regulative Principle of Worship de Brian M. Schwertley, Editora Os Puritanos, p. 24 – 42.
[2] – Algaravia — Linguagem muito confusa, incompreensível.