Livro II — Capítulos 4 – 5.
“Com duas asas se levanta o homem acima das coisas terrenas: — simplicidade e pureza”. A simplicidade há de estar na intenção e a pureza no afeto. A simplicidade procura a Deus, a pureza o abraça e frui. “Em nenhuma boa obra acharás estorvo, se estiveres interiormente livre de todo afeto desordenado”. Se só queres e buscas o agrado de Deus e o proveito do próximo, gozarás de liberdade interior. Se teu coração for reto, toda criatura te será um espelho de vida e um livro de santas doutrinas. Não há criatura tão pequena e vil que não represente a bondade de Deus.
“Se fosses interiormente bom e puro, logo verias tudo sem dificuldade e compreenderias bem”. O coração puro penetra o céu e o inferno. Cada um julga segundo seu interior. Se há alegria neste mundo, é o coração puro que a goza; se há, em alguma parte, tribulação e angústia, é a má consciência que as experimenta. Como o ferro metido no fogo perde a ferrugem e se faz todo incandescente, assim o homem que se entrega inteiramente a Deus fica livre da tibieza e transforma-se em novo homem.
Quando o homem começa a entibiar, logo teme o menor trabalho e anseia as consolações exteriores. Quando, porém, começa deveras a vencer-se e andar com ânimo no caminho de Deus, leves lhe parecem as coisas que antes achava onerosas.
2 – Da consideração de si mesmo.
“Não podemos confiar muito em nós, porque frequentemente nos faltam a graça e o critério”. Pouca luz temos em nós e esta facilmente a perdemos por negligência. De ordinário também não avaliamos quanta é nossa cegueira interior. “A miúdo procedemos mal e nos desculpamos, o que é pior”. Às vezes nos move a paixão, e pensamos que é zelo. “Repreendemos nos outros as faltas leves, e nos descuidamos das nossas maiores”. Bem depressa sentimos e ponderamos o que dos outros sofremos, mas não se nos dá do que os outros sofrem de nós. Quem bem e retamente avaliasse suas obras não seria capaz de julgar os outros com rigor.
“O homem interior antepõe o cuidado de si a todos os outros cuidados, e quem se ocupa de si com diligência facilmente deixa de falar dos outros. Nunca serás homem espiritual e devoto, se não calares dos outros, atendendo a ti próprio com especial cuidado”. Se de ti só e de Deus cuidares, pouco te moverá o que se passa por fora. Onde estás, quando não estás contigo? E, depois de tudo percorrido, que ganhaste se esqueceste a ti mesmo? “Se queres ter paz e verdadeiro sossego, é preciso que tudo mais dispenses, e a ti só tenhas diante dos olhos”.
Portanto, grandes progressos farás, se te conservares livre de todo cuidado temporal; muito te atrasará o apego a alguma coisa temporal. “Nada te seja grande, nobre, aceito ou agradável, a não ser Deus mesmo ou o que for de Deus”. Considera vã toda consolação que te vier das criaturas. “A alma que ama a Deus despreza tudo que é abaixo de Deus”. Só Deus eterno e imenso, que tudo enche, é o consolo da alma e a verdadeira alegria do coração.
Paz e graça.
Pr. Me. Plínio Sousa.
[1] – Tomás de Kempis, 1380 – 1471, Imitação de Cristo, p. 33 – 34.